quarta-feira, 23 de junho de 2010

Moda e afro-perspectividade: “com que roupa eu vou?”

Renato Nogueira Jr.
Professor do Departamento de
Educação e Sociedade da UFRRJ

Existem dezenas de programas nas tvs abertas e fechadas que propõem a “transformação” de mulheres e homens – em escala menor – passando pelo corte e processamento químico do cabelo (não nesta ordem necessariamente), além de um novo guarda-roupa e maquiagem completa. Não sou assíduo espectador desses programas; mas, todos os quatro ou cinco que assisti pareciam ter a mesma equipe de produção, direção e até os mesmos patrocinadores; salvo pequenas diferenças, todos propõem o alisamento do cabelo, maquiagem que ressalte feições caucasianas, roupas ocidentais que ajudem a tornar a silhueta das mulheres mais semelhantes às modelos de passarela. Não posso deixar de registrar duas coisas: em primeiro lugar, minha amostra é restrita e não se trata de uma análise científica; tão somente, um ponto de vista. E, por fim: afro-perspectividade é o ponto de vista que busco imprimir diante desse fenômeno das transformações feitas em programas de tv. Cabe acrescentar que afro-perspectividade pode ser definida como um ponto de vista que procura a valorização estética, política, social, afetiva, ética e espiritual dos povos africanos e da diáspora africana.

Pois bem, voltando aos programas do tipo fique mais bonita, alisando o cabelo e usando roupas de griffes ocidentais, o cenário e roteiro são simples: entra uma mulher negra – seja retinta, menos pigmentada ou de quaisquer tonalidades – ela está com o cabelo semi-processado quimicamente e desalinhado, usando roupas coladas ao corpo e conforme padrões que não são clínicos: classificada como acima do peso. A apresentadora diz que o cabelo da mulher é crespo, suas roupas são inadequadas e todo o resto está errado. Numa visão afro-perspectivista cabelos não são crespos, muito menos duros ou ruins (coisa que já foi dita por apresentadoras e apresentadores e rolam em várias rodas de conversas). O cabelo da “contemplada” é lanoso, de fios finos e não precisa ser “corrigido”; afinal, propor correção é sugerir que existe um erro. No caso do cabelo, a “contemplada” já teria nascido errada. Essa visão monocultural é descrita como o “bom gosto” e vai sendo impregnada nas espectadoras e espectadores como o melhor modo de usar o cabelo, sugerindo que se trata de uma “escolha”. A indústria do alisamento é indissociável do projeto supremacista branco que define a beleza a partir de referenciais europeus. Com os trajes se dá o mesmo, numa sociedade multicultural, a indústria da moda continua marginalizando vestuários de matrizes africanas e indígenas. Numa sociedade multicultural, intercultural e de vasta diversidade etnicorracial, a eleição de alguns tipos de vestimentas étnicas como as mais chiques e apropriadas é de se estranhar. Porque além de ser restritivo, parece revelar um projeto de busca de hegemonia branca e manutenção da invisibilidade das culturas não-européias.  Por conseguinte, a obrigatoriedade dissimulada que institui o terno e gravata como o melhor para vestir os homens em ocasiões especiais, tal como negócios e casórios é um belo exemplo de intolerância – uma das faces do racismo.

É preciso cultivar a efetiva diversidade etnicorracial. O que passa pelo uso do cabelo de fio fino ou lanoso sem processamento, uso e abuso de tecidos africanos, turbantes, batas e todos os acessórios possíveis assentados nas raízes africanas. Paralelamente, a violência simbólica da celebração contínua e renitente do branqueamento e europeização como se fossem padrões chiques precisa ser combatida. Não se trata de nada além de buscar a contemplação da verdadeira composição da sociedade brasileira. Os dados do IBGE de 2007 apontavam, naquela época, que a população negra (pretos e pardos) representava 50,6% do total de habitantes do território nacional; mas, segue sendo subrepresentada nos meios de comunicação e tendo seu fenótipo desclassificado. Basta ler rótulos de shampoos “étnicos” que dizem: “para cabelos rebeldes e sem vida”.  Uma ressalva, por que brancas e brancos não seriam étnicos? Com efeito, não é possível que a indústria da beleza continue fingindo que o Brasil é de maioria branca, o que, se fosse o caso, também não justificaria a invisibilidade e subalternização das estéticas negras. É preciso imprimir uma afro-perspectividade na indústria da beleza, positivando, glamourizando e naturalizando os diversos tipos de beleza negra, passando pela maquiagem, valorização do cabelo lanoso e uso de roupas africanas. Do contrário, as perversas ofensivas do racismo permanecem fazendo milhões de vítimas diariamente. Por isso se me questionam, como se deve ir para rodas de bambas? Pergunto e respondo. Com que roupa eu vou?!  Bubu, cordão feito de búzios de Benin e sandálias de griot.

Fonte: Coluna Afro-Perspectivas Filosóficas

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