17 de dezembro de 1995
"`Você me lembra meu jipe
Quero te encerar, neném
Você me lembra minha conta bancária
Quero te gastar, neném´*
Esses versos são de `You Remind Me of Something´ (você me lembra alguma coisa), de R. Kelly. A canção é suave, com uma base funk e uma voz muito sexy. Mas por que ranjo os dentes toda vez que a escuto?
Não é por que, como diz meu filho, eu seja um velho incapaz de compreender os `cachorro loco´ da nova geração. Tendo dito isso, devo confessar que me sinto mais à vontade com o blues, o som suave de Anita Baker, ou até mesmo Brownstone, com cantoras como Sade e, sim, senhores e senhoras, Whitney. Também curto muito o rap por sua vitalidade, crueza, irreverência e criatividade. O rap é o autêntico legado de um povo com antigas tradições orais africanas, que abarcam várias gerações, desde os contistas chamados griots, que cantavam canções de louvor a seus reis, até os bluezeiros que transformavam sua dor em arte. É preciso entender que, para uma geração nascida nas águas frias do descontentamento nos EUA dos anos 70 e 80, durante períodos de negação, privações e uma emergente supremacia branca, uma canção de amor às vezes pode soar falsa e desafinada, diante da dura realidade da sobrevivência.
Quando as mães e pais dessa geração eram jovens, Curtis Mayfield cantava: `Somos vencedores! E nunca deixe qualquer um dizer que você não pode fazê-lo, porque essa mentalidade te bloqueia. Estamos indo pra frente!´; Earth, Wind and Fire entoavam com rara harmonia: `Mantenha tua cabeça voltada para o céu!´; Bob Marley and the Wailers retumbavam sobre uma forte linha de baixo: `Levante-se! De pé! Defenda os seus direitos!´**
Já a geração hip-hop formou sua consciência num tempo em que se ouviam as letras de Tina Turner, `O que amor tem a ver com isso?´ (What´s Love Got to Do With It?), ou uma mescla egocêntrica que glorificava o materialismo, como `Meus Adidas´ (My Adidas), do Run DMC, sobre um par de tênis, ou `Amigos´ (Friends), de Whodini, cujos versos falam sobre como não se pode confiar em ninguém.
Seus pais cresceram em meio à esperança, tomando consciência da libertação dos negros. Esses jovens cresceram em um ambiente de gcão-come-cão-ismoh, de recuo em relação às promessas feitas nos EUA, do Reaganismo e de um ressurgimento dos direitistas brancos. Neste sentido, a dureza do rap simplesmente reflete uma realidade mais dura, de vidas vividas em meio a promessas rompidas. Como poderia ser de outra maneira?
De fato, no fundo, no fundo, o rap é um negócio multibilionário, que penetra na cultura estadunidense e influi na maneira de pensar de milhões. É aquele corporativismo tão-americano que leva a bravura do rap ao esgoto do materialismo: uma mulher – um ser vivo – lembra a um homem uma coisa – um carro.
Para mim, isso é mais perverso que as tão criticadas menções a gcadelas e putash. É especialmente repreensível quando lembramos que, no século XIX, segundo a lei, os negros eram simplesmente propriedade, bens, coisas, como carroças possuídas pelos brancos. Me assombra que, três gerações depois, um homem negro seja capaz de cantar que uma mulher negra, seu par divino, seu próprio ser feminino, glembra seu jipeh.
Isso não é, nem poderia ser, uma denúncia contra o rap. As canções `Dear Mama´e `Keep your Head Up´, do falecido Tupac Shakur, são brilhantes exemplos de expressões artísticas da unidade do amor entre a própria família e seu povo. A obra desse jovem é criativa, comovente, amorosa, funky, revoltada e real, como uma boa parte do gênero. Como qualquer forma de arte nos EUA, também é um negócio, com todas as influências do mercado sobre a produção. Quanto mais conscientes seus artistas, mais consciente a arte.
Mantenha sua cabeça em pé***."
Do corredor da morte, aqui é Mumia Abu-Jamal
"`Você me lembra meu jipe
Quero te encerar, neném
Você me lembra minha conta bancária
Quero te gastar, neném´*
Esses versos são de `You Remind Me of Something´ (você me lembra alguma coisa), de R. Kelly. A canção é suave, com uma base funk e uma voz muito sexy. Mas por que ranjo os dentes toda vez que a escuto?
Não é por que, como diz meu filho, eu seja um velho incapaz de compreender os `cachorro loco´ da nova geração. Tendo dito isso, devo confessar que me sinto mais à vontade com o blues, o som suave de Anita Baker, ou até mesmo Brownstone, com cantoras como Sade e, sim, senhores e senhoras, Whitney. Também curto muito o rap por sua vitalidade, crueza, irreverência e criatividade. O rap é o autêntico legado de um povo com antigas tradições orais africanas, que abarcam várias gerações, desde os contistas chamados griots, que cantavam canções de louvor a seus reis, até os bluezeiros que transformavam sua dor em arte. É preciso entender que, para uma geração nascida nas águas frias do descontentamento nos EUA dos anos 70 e 80, durante períodos de negação, privações e uma emergente supremacia branca, uma canção de amor às vezes pode soar falsa e desafinada, diante da dura realidade da sobrevivência.
Quando as mães e pais dessa geração eram jovens, Curtis Mayfield cantava: `Somos vencedores! E nunca deixe qualquer um dizer que você não pode fazê-lo, porque essa mentalidade te bloqueia. Estamos indo pra frente!´; Earth, Wind and Fire entoavam com rara harmonia: `Mantenha tua cabeça voltada para o céu!´; Bob Marley and the Wailers retumbavam sobre uma forte linha de baixo: `Levante-se! De pé! Defenda os seus direitos!´**
Já a geração hip-hop formou sua consciência num tempo em que se ouviam as letras de Tina Turner, `O que amor tem a ver com isso?´ (What´s Love Got to Do With It?), ou uma mescla egocêntrica que glorificava o materialismo, como `Meus Adidas´ (My Adidas), do Run DMC, sobre um par de tênis, ou `Amigos´ (Friends), de Whodini, cujos versos falam sobre como não se pode confiar em ninguém.
Seus pais cresceram em meio à esperança, tomando consciência da libertação dos negros. Esses jovens cresceram em um ambiente de gcão-come-cão-ismoh, de recuo em relação às promessas feitas nos EUA, do Reaganismo e de um ressurgimento dos direitistas brancos. Neste sentido, a dureza do rap simplesmente reflete uma realidade mais dura, de vidas vividas em meio a promessas rompidas. Como poderia ser de outra maneira?
De fato, no fundo, no fundo, o rap é um negócio multibilionário, que penetra na cultura estadunidense e influi na maneira de pensar de milhões. É aquele corporativismo tão-americano que leva a bravura do rap ao esgoto do materialismo: uma mulher – um ser vivo – lembra a um homem uma coisa – um carro.
Para mim, isso é mais perverso que as tão criticadas menções a gcadelas e putash. É especialmente repreensível quando lembramos que, no século XIX, segundo a lei, os negros eram simplesmente propriedade, bens, coisas, como carroças possuídas pelos brancos. Me assombra que, três gerações depois, um homem negro seja capaz de cantar que uma mulher negra, seu par divino, seu próprio ser feminino, glembra seu jipeh.
Isso não é, nem poderia ser, uma denúncia contra o rap. As canções `Dear Mama´e `Keep your Head Up´, do falecido Tupac Shakur, são brilhantes exemplos de expressões artísticas da unidade do amor entre a própria família e seu povo. A obra desse jovem é criativa, comovente, amorosa, funky, revoltada e real, como uma boa parte do gênero. Como qualquer forma de arte nos EUA, também é um negócio, com todas as influências do mercado sobre a produção. Quanto mais conscientes seus artistas, mais consciente a arte.
Mantenha sua cabeça em pé***."
Do corredor da morte, aqui é Mumia Abu-Jamal
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