quarta-feira, 16 de março de 2011

A fome e as finanças: um retrato da desigualdade

Atualmente, a população mundial conta com mais de 6,8 bilhões de pessoas. De acordo com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e Alimentação (FAO), 925 milhões desse total passam fome. Trata-se de um contingente equivalente a 5 vezes o total da população brasileira! Além disso, vale registrar que as crianças são as que mais sofrem com tal quadro. Quase um terço das crianças nascidas no chamado Terceiro Mundo, ou seja, 180 milhões, apresentam problemas de desenvolvimento físico e intelectual em razão de problemas de subnutrição nos primeiros 5 anos de vida. O artigo é de Paulo Kliass.

Uma das armadilhas mais perigosas quando se analisam questões macro e de grande amplitude, como é o caso da fome no mundo, reside na tendência a considerar tais fenômenos como “fatalidades”, processos profundos e de longuíssimo prazo, praticamente sem solução à vista. Aquela estória de que “esse quadro está aí desde que o mundo é mundo” e por aí vai. Como os avanços não ocorrem no curto prazo e também não existem instrumentos efetivos de decisão no plano internacional, a coisa vai sendo empurrada com a barriga e a situação dramática continua a afetar a vida de boa parte da população do mundo.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos determina em seu Artigo 25, entre outros princípios, que toda pessoa “tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (GN). No entanto, a realidade está bem distante desses direitos básicos, em especial no que se refere à questão da fome.

Os números são realmente chocantes e o que mais impressiona é a passividade das elites políticas por todos os cantos do planeta, que pouco se movimentam na busca de soluções efetivas. A grosso modo, elas estão ausentes, seja no plano local, nacional, regional ou global. Na verdade, o Brasil é um dos poucos exemplos onde políticas públicas foram implementadas pelo Estado com algum grau de seriedade e resultados. Nesse quesito, desde o Comunidade Solidária e os sucessores Bolsa Família e Fome Zero, os programas governamentais brasileiros têm sido uma referência para os que se preocupam com o tema pelo mundo afora.

Atualmente, a população mundial conta com mais de 6,8 bilhões de pessoas. De acordo com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e Alimentação (FAO), 925 milhões desse total passam fome (1). Trata-se de um contingente equivalente a 5 vezes o total da população brasileira! Além disso, vale registrar que as crianças são as que mais sofrem com tal quadro. Quase 1/3 das crianças nascidas no Terceiro Mundo, ou seja, 180 milhões, apresentam problemas de desenvolvimento físico e intelectual em razão de problemas de subnutrição nos primeiros 5 anos de vida. Pior ainda, a fome é responsável por 35% dos óbitos de crianças nessa faixa etária.

A distribuição regional do mapa da fome reforça ainda mais os aspectos da profunda desigualdade sócio-econômica em escala internacional. A absoluta maioria da população que passa fome está concentrada na Ásia e na África Subsaariana – ali estão 88% desse quase 1 bilhão de pessoas. A título de comparação, a América Latina e Caribe contêm 6% e os países desenvolvidos apenas 2% desse total.

Parece estar mais do que comprovado que a sociedade contemporânea tem plenas condições tecnológicas e econômicas de resolver esse drama. Assistimos a uma contínua e impressionante elevação nas taxas de produtividade em geral, inclusive no domínio da agropecuária. Existem terras agriculturáveis espalhadas pelos vários continentes. A questão, como sempre, esbarra nos problemas de ordem política e dos interesses econômicos existentes por trás dos governos, a orientar as políticas públicas na perspectiva do lucro privado e não no atendimento das necessidades da maioria da população.

A mercantilização generalizada e a crescente financeirização de todas as atividades em escala global podem contribuir para a explicação de tal comportamento. O desenvolvimento das atividades agrícolas e pecuárias - a base para a alimentação do ser humano – orienta-se como um setor a mais no extenso menu das opções oferecidas pelo mundo capitalista. Ao serem tratados apenas como mercadoria, itens como arroz, trigo, carne, soja, milho, dentre tantos outros, perdem a sua característica essencial e primeira. Qual seja, a de satisfazer uma das mais essenciais carências dos indivíduos em sociedade – alimentar-se.

A subordinação de tais necessidades sócias básicas à lógica da geração de lucro e da acumulação do capital provoca distorções graves, uma vez que as razões para produzir ou não tal alimento, para investir ou não na agropecuária em tal região, saem da esfera da política pública para a lógica do empreendimento privado. Ou, ainda que apoiada por algum mecanismo estatal (como nos casos de fortes subsídios concedidos nos países desenvolvidos), a lógica permanece restrita aos interesses daquele País e não leva em consideração as necessidades da alimentação da população em escala mundial.

Dessa forma, a dinâmica de preservação dos níveis de miséria e de desigualdade se mantém tanto nos sistemas políticos injustos e excludentes nos planos local e nacional, quanto no modelo desigual da distribuição da riqueza entre os países. As falsas desculpas de que as condições para produção agrícola e pecuária, em escala global, são insuficientes para atender ao crescimento populacional não se sustentam.

A História e importantes pesquisadores, como o brilhante brasileiro Josué de Castro (2) , se encarregaram de mostrar que as hipóteses de Malthus estavam equivocadas. O ritmo de crescimento da população tem diminuído, a capacidade potencial de produção de alimentos tem crescido de forma significativa e mesmo assim a fome atinge um enorme contingente de indivíduos. E o mais grave: segundo os dados da própria ONU, 80% das pessoas que passam fome vivem em regiões e trabalham em atividades ligadas ao campo ou à pesca. Ou seja, numa perspectiva planetária, o problema não se restringe apenas aos movimentos migratórios do campo para as cidades, que estariam a explicar as dificuldades com a alimentação.

Por outro lado, a ampliação descontrolada das opções financeiras introduz uma dificuldade suplementar na dinâmica das atividades agropecuárias. Aos já existentes e antigos movimentos de especulação com os estoques de produtos e a manipulação de seus preços nos mercados nacionais e internacionais, veio somar-se a criação de títulos financeiros que se autonomizaram em sua dinâmica de comercialização e negociação. Isso significa dizer que tais papéis perderam toda e qualquer relação com a atividade produtiva do bem que leva impresso em seu nome – café, soja, carne bovina, trigo, milho. A criatividade do mercado financeiro em busca de novas alternativas de ganhos e movimentação passa a oferecer, assim, promessas de compra ou venda futura de toneladas de um ou outro produto. É o que o financês chama de “mercado a termo”, o mercado futuro de “commodities”. Outros ainda simplesmente operam títulos de cotação de preços de tais bens primários no horizonte de meses ou mesmo de anos. A opção pelo tipo de aposta “altista” ou “baixista” fica por conta do freguês...

O movimento especulativo sem controle dos órgãos governamentais ou dos organismos multilaterais tende a criar situações insustentáveis do ponto de vista da realidade da economia. Os papéis são lançados, comprados, vendidos, revendidos, de tal forma que o movimento só se sustenta nessa ilusão da dinâmica do mercado em movimento. Caso alguém resolva parar a roda da ciranda financeira por um instante, vem à tona a crise como a que o mundo conheceu recentemente. Tudo não passava de um conto de fadas. Os papéis viraram pó. Isso porque os mercados financeiros no mundo todo giram diariamente quantias de toneladas virtuais estupidamente superiores à capacidade efetiva dos países produzirem aquele volume de produtos agropecuários. Pura bolha, toda recheada de ar!

Outro aspecto agravante relaciona-se ao fato de que as atividades realizadas no campo cada vez mais se distanciam de sua função precípua. A lógica de “atender à demanda” provoca distorções estruturais no sistema, às quais acabamos por nos acostumar, nesse perigoso comportamento da passividade. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que 40% da área plantada pelo milho destinam-se à produção de etanol. No caso brasileiro, sabe-se que boa parte da soja plantada e exportada é destinada à produção de ração animal. Os programas todos de substituição energética das fontes de combustível por fontes renováveis plantadas (como o nosso etanol e biodiesel) carregam em seu interior também essa contradição. São superfícies consideráveis de terras a produzir bens agrícolas que não se destinam a resolver o problema crucial da fome.

O ponto a ressaltar é que, desde haja vontade política e um pacto entre os principais países do planeta, não é muito difícil resolver a questão da fome nos tempos de hoje. Idéias e propostas não faltam. Porém, todas elas envolvem o debate de natureza redistributiva da renda e o reconhecimento da necessidade de uma ação reguladora sobre os chamados agentes econômicos para buscar a solução. Assim, observa-se uma enorme resistência por parte dos que detêm posições de comando e decisão no mundo político e empresarial.

Já comentei aqui a respeito da Taxa Tobin e da “Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos” (ATTAC) (3). Pois bem, trata-se da idéia do economista James Tobin e transformada em movimento internacional pela entidade no final da década de 1990. A proposta é de criar uma espécie de imposto sobre as operações financeiras internacionais, que seria destinado à constituição de um fundo internacional para erradicação da fome e da miséria no mundo. Apenas a título de ilustração, caso fossem atingidas apenas as operações cambiais e com uma alíquota irrisória de 0,005%, seriam arrecadados por volta de US$ 30 bilhões anualmente. O mundo financeiro resiste heroicamente. Mas não hesitaram um segundo em solicitar as centenas de bilhões de dólares destinados aos bancos e às grandes empresas transnacionais à beira de falência desde 2009 até hoje.

É também bastante antiga a proposta de constituição de fundos internacionais voltados a controlar os estoques reguladores de matérias-primas e produtos agrícolas em escala internacional. Concebidos para serem operados na forma de uma gestão compartilhada no interior de organismos multilaterais, tais instrumentos poderiam servir como anteparo de proteção aos movimentos especulativos nos mercados de tais produtos, além de permitir ações coordenadas em momentos de escassez de oferta causados por tragédias naturais.

Ganham força também nos espaços de debate, e mesmo na esfera diplomática, as propostas de maior regulação e fiscalização de instrumentos financeiros especulativos, em particular na área das “commodities”. Os bancos, as bolsas de mercadorias as demais instituições financeiras passariam a ser mais controlados e as distorções de natureza especulativa, que prejudicassem o atendimento das necessidades mundiais de produtos alimentícios, seriam coibidas. Esse tema já está na pauta do G-20.

Deveriam também ser fortalecidos os programas de reforma agrária e de agricultura familiar em todo o mundo, como forma de aumentar a oferta de bens alimentícios de utilização efetiva, além de estimular a fixação das famílias no campo e reduzir o luxo migratório para os ambientes urbanos. Ao mesmo tempo, poderiam ser implementadas medidas de estímulo à produção de alimentos, ao invés de utilização de terras para outros fins.

Enfim, é evidente que a solução da tragédia da fome passa por uma vontade política efetiva por parte dos tomadores de decisão no mundo contemporâneo. E que o universo financeiro teria uma grande contribuição a fornecer para reduzir esse e outros níveis de desigualdade atualmente existentes.

NOTAS

(1) Ver: http://www.fao.org/docrep/013/i2050s/i2050s07.pdf

(2) Ver: http://www.josuedecastro.com.br/port/index.html

(3) Ver: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4718


(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

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