25 de Abril de 2010 Enquanto o Mundial 2010 [Copa do Mundo] de Junho e Julho atrai as atenções para a África do Sul, o povo trabalhador e pobre desse país vai continuar os seus protestos.» Neste artigo, que o Passa Palavra publicará em quatro partes, o autor fundamenta as condições económicas e políticas em que se travam esses combates sociais.
Por Patrick Bond
Por Patrick Bond
Enquanto o Mundial 2010 [Copa do Mundo] de Junho e Julho atrai as atenções para a África do Sul, o povo trabalhador e pobre desse país vai continuar os seus protestos, a um ritmo que agora ultrapassa as mais elevadas médias por pessoa de todo o mundo. De 2005 até agora, a estimativa modesta da polícia é de uma média anual de mais de 8.000 incidentes em “actos de manifestação”, levados a cabo por multidões urbanas em cólera, sem medo do recém-empossado governo de Jacob Zuma (Freedom of Expression Institute 2009). Em parte, essa cólera é um reflexo do carácter distorcido do “crescimento” testemunhado pela África do Sul
perante a adopção de políticas macroeconómicas e de microdesenvolvimento neoliberais após o fim do apartheid em 1994, e da resistência compreensível à mercadorização da vida (Polanyi 1957) e às desigualdades cada vez maiores patentes nas favelas do país. O impacto da actual crise económica global-nacional aumenta a intensidade e a extensão das contradições actuais, resultantes de causas anteriores. Os movimentos sociais e trabalhistas cujos objectivos se confinaram, respectivamente, aos níveis local e corporativo podem ter de se unir com os ambientalistas para assumirem propostas bem mais radicais neste contexto, embora a influência sindical-comunista no Congresso Nacional Africano, que está no poder, dificulte a emergência de uma frente esquerdista na sociedade civil a curto ou mesmo médio prazo.

1. Um caldeirão urbano de contradições capitalistas pós-apartheid
Um dos reflexos de um desenvolvimento extremamente desigual é que as cidades da África do Sul apresentam o maior crescimento mundial de especulação imobiliária, com um crescimento indexado à inflacção de 389% entre 1997 e 2008, mais do dobro do segundo maior caso de crescimento especulativo, o da Irlanda, com 193%, segundo The Economist de 20 de Março de 2009, e com a Espanha, a França e a Grã-Bretanha situadas também acima dos 150%. (O índice estadunidense Case-Schiller foi, no mesmo período, de apenas 66%). Apesar de no período pós-apartheidter sido construído um número muito maior de casas com ajuda do Estado para as famílias de baixo rendimento, se comparado com a última década do apartheid, segundo o Banco Mundial em 1994 as casas pós-apartheid são geralmente de metade do tamanho, construídas com materiais mais precários, situadas a maior distância dos empregos e dos centros de convivência comunitários, com acesso intermitente à água e à electricidade e com piores serviços urbanos, nomeadamente recolha insuficiente do lixo, condições sanitárias inumanas, arruamentos sujos e deficiente drenagem das águas pluviais (Bond 2005).
Na maior parte das províncias, a maioria dos incidentes em Actos de Manifestação eram “protestos relativos a serviços sociais-urbanos”, como a baixa qualidade ou o alto custo do fornecimento de água, de electricidade ou de saneamento (Freedom of Expression Institute 2009). Mesmo com a instituição dos “Serviços Básicos Gratuitos” – o fornecimento simbólico de 6.000 litros de água e 50 kWh de electricidade mensais por domicílio (com pequenos aumentos previstos para 2010) – o gráfico abrupto das tarifas de água e electricidade é um sinal de que o encarecimento do segundo bloco de consumos afectou o nível de vida, resultando em aumento de facturas por pagar, mais cortes de fornecimento (1,5 milhões por ano no caso da água, segundo dados oficiais) e menores níveis de consumo nas camadas pobres (Bond e Dugard 2008).

Os culpados, neste caso, não foram só o moribundo Slovo e o seu director-geral, Billy Cobbett (que depois dirigiria no Banco Mundial a União das Cidades), pois os dados estavam lançados com a adopção do neoliberalismo no início dos anos 1990 pelo antigo regime de apartheid. Esse período foi marcado por numerosas mudanças na política dirigista dos anos 1980, induzida pelas sanções; essas mudanças foram levadas a cabo pelos “econocratas” verligte[esclarecidos] afrikaners de Pretória quando, com as negociações de 1990-94, diminuiu a influência dos “securocratas” e aumentou o poder dos meios empresariais brancos anglófonos. Nesse período ocorreu a mais longa depressão da África do Sul (1989-93), o que levou o ANC de Nelson Mandela a ter de desmobilizar periodicamente os protestos, até que, no final de 1993, foram dados os últimos retoques na “transição da elite” para a democracia (Bond 2005).

A base de sustentação da posterior bolha financeira e patrimonial teve duas origens: os controlos cambiais residuais que limitam os investidores institucionais a 15% de investimentos externos e que ainda restringem as transferências de valores para o exterior pelas elites locais; e um falso sentimento de confiança na gestão macroeconómica. Afirma-se repetidamente que com o ministro das Finanças Trevor Manuel a “estabilidade macroeconómica” foi alcançada pela primeira vez desde o fim do apartheid em 1994. No entanto, nenhum outro mercado emergente teve, nesse período, tantas crises de liquidez (15% em termos nominais): a África do Sul sofreu estas crises em 1996, 1998, 2001, 2006 e 2008. No começo de 2009, The Economist de 25 de Fevereiro classificava a África do Sul como o mais “arriscado” entre 17 mercados emergentes, em boa medida porque o poder empresarial branco gerara um enorme défice da balança de pagamentos com as transferências de lucros e dividendos para as suas sedes financeiras de Londres e de Melbourne.
Além disso, o crédito ao consumo atraíra as importações do leste da Ásia a uma taxa superior à das exportações sul-africanas, mesmo durante o grande aumento dos preços no comércio internacional em 2002-2008. Sem dúvida que o principal responsável pelos 5% de crescimento anual do Produto Interno Bruto registado durante a maior parte da década de 2000 foi o crescimento do crédito ao consumo, com a percentagem de individamento dos rendimentos familiares disparando de 50% em 2005 para 80% em 2008, quando, ao mesmo tempo, o crédito geral bancário crescia de 100% para 135% do Produto Interno Bruto. Mas este endividamento começou a tornar-se um enorme problema, com as dívidas inadimplentes a aumentarem, desde 2007, 80% nos cartões de crétido e 100% nas hipotecas, e a percentagem das quebras totais de reembolsos de empréstimos [cessações de pagamentos] no rendimento bancários líquidos a subir de 30% no início de 2008 para 55% no fim desse mesmo ano (SARB 2009).
[*] Patrick Bond dirige o Center for Civil Society http://www.ukzn.ac.za/ccs/ na Universidade de KwaZulu-Natal em Durban e é activista de movimentos da comunidade, do ambiente e do trabalho.
Referências
Bond, P. (2000) Cities of gold, townships of coal. Africa World Press, Trenton.
Bond, P. (2005) Elite transition. Pluto Press, London and University of KwaZulu-Natal Press, Pietermaritzburg.
Bond, P. e J. Dugard (2008) The case of Johannesburg water: What really happened at the pre-paid ‘Parish pump’.Law, Democracy and Development, 12, 1, 1-28.
Freedom of Expression Institute and Centre for Sociological Research (2009), National trends around protest action: Mapping protest action in South Africa, Johannesburg.
Mayekiso, M. (1996) Townships politics. Monthly Review, New York.
Polanyi, K. (1957) The great transformation. Boston: Beacon.
Seekings, J. (2000) UDF: A history of the United Democratic Front in South Africa, 1983-1991. Ravan: Johannesburg.
South African Reserve Bank (2009) Financial stability review. Pretoria.
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