Entre um passado de traumas e as incertezas do
futuro, povo Mÿky vive um cotidiano de resistência cultural
29/12/2011
Renato Santana
de Brasnorte, Mato Grosso (MT)
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O cacique mÿky Janãxi: “Tudo se acabou com o branco” - Foto: Renato Santana |
Os
caminhos que levam à aldeia Japuíra, região de Brasnorte, Mato Grosso,
são tão novos para seus habitantes quanto aos visitantes de primeira
viagem.
Recém instalados, postes correm quilômetros de fios elétricos pela
estrada de terra que se aprofunda na Amazônia matogrossense até a Terra
Indígena Mÿky. Por entre os escombros de árvores derrubadas para a
empreitada, macacos e demais bichos da floresta se precipitam no caminho
e novamente, assustados, retornam para a mata. O hálito da selva é
úmido e fresco.
Em outros trechos, fazendas de
gado crescem em queimadas diárias e transformam a floresta em pasto –
paradoxo à ação dos madeireiros que retiram de forma incessante carretas
com toras de árvores. A estrada torna-se abafada e quente. Durante o
trajeto aos Mÿky, porteiras, gado e fumaça acompanham quem segue ao
Território Indígena, não incluído na demarcação ocorrida antes da
Constituição de 1988.
Muito além de eletricidade,
desliza pelos cabos de alta tensão ao centro do convívio social Mÿky
uma avalanche de possibilidades de novas vivências decorrentes do
pluralismo histórico, no qual as relações interculturais promovem
transformações no modo de vida e cosmologia dos indígenas – inclusive
com a assimilação de valores sistêmicos vistos na sociedade envolvente.
Quarenta anos depois do contato, ocorrido entre junho e julho de 1971,
os Mÿky discutem como adaptar as informações que vêm de fora da aldeia
com a cultura tradicional.
Saídos da pedra
De
acordo com a cosmologia Mÿky, todos os seres humanos saíram de uma
enorme pedra. Viviam lá sem saber das belezas que compunham o mundo, mas
conviviam em comunidade, dançavam e cantavam. Certa vez, um urubu
decidiu espiar por uma fresta o que existia fora da pedra e apanhou uma
flor. Com ela, convenceu os demais a saírem – apesar dos questionamentos
feitos sobre as brigas e violência que possivelmente os esperavam. O
encanto pela
beleza
prevaleceu, e com a ajuda dos animais que já viviam no mundo,
conseguiram sair da pedra. Dizem que apenas um ancião ficou por lá: não
queria sofrer com as violências e doenças.
Todos
os povos indígenas que saíram foram viver embaixo de uma árvore. Os Mÿky
foram para um pé de cambará. Os brancos também tiveram a sua árvore. No
entanto, quando missionários indigenistas fizeram contato, em maio de
1971, os brancos não estavam mais contentes em ter sua própria árvore e
há muito haviam passado a invadir a dos povos indígenas.
Desde
o início do século 20, os Mÿky passaram a sofrer massacres e violências
de seringueiros. “(...) Então um deles, para melhor trucidar os
misérrimos foragidos (indígenas que fugiam dos ataques), resolveu trepar
à coberta de um dos ranchos, praticar nela uma abertura e por esta,
metendo o cano da carabina, foi visando e abatendo, uma após outra, as
pessoas que lá estavam, sem distinguir sexos nem idades”, relatou o
padre jesuíta Dornstauder nas páginas de seu diário, em novembro de
1948.
“Era pequeno, mas tenho na cabeça os mais
velhos falando. Tudo se acabou com o branco e fazendeiro invade,
destrói. Isso me preocupa”, diz o cacique Mÿky Janãxi. O contato teve
como motivação os já seculares relatos dos atores de um desenvolvimento
remoto que avançavam sobre os povos em liberdade, na ganância pelas
riquezas dos territórios. Antes da chegada dos missionários jesuítas,
durante o ano de 1971, já havia sido pedido para a Fundação Nacional do
Índio (Funai) a demarcação das terras dos Mÿky do Escondido.
O
procedimento nunca foi feito e, nos dois anos posteriores ao contato,
ataques de fazendeiros precipitaram-se sobre a aldeia Mÿky. “Então pude
constatar que das malocas indígenas só havia restado um montão de
destroços. O trator de esteiras trabalhava. Os índios haviam se retirado
há dois dias, levando nas costas o que puderam. Foram enganados.”,
declarou o jesuíta Thomaz de Aquino Lisboa. A denúncia do missionário
garantiu a intervenção da Funai.
O menino que virou roça
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Crianças mÿky aprendem na escola o idioma dos seus ancestrais
Foto: Renato Santana |
Conta-se
entre os Mÿky que a roça surgiu de um menino indígena perguntador e
curioso. Sempre que o pai, chefe da aldeia, chegava da caça ou pesca o
menino perguntava qual bicho o pai tinha caçado. Em resposta, o chefe
assobiava ao filho. Dia após dia essa era a resposta do pai. Zangado, o
menino chamou a mãe. No mato, ao avistar uma linda capoeira, cavou um
buraco e disse para a mãe enterrá-lo, de modo que ficasse apenas com a
cabeça de fora. Depois de algumas negativas e sob lágrimas, a mulher o
cobriu de terra. Alguns dias depois, mãe e pai voltaram para ver como o
filho estava.
O braço virou mandioca mansa. A
cabeça virou cabaça. A unha virou amendoim. A costela virou feijão
costela. O osso do peito virou feijão fava. O coração, cará branco. O
fígado, cará preto. A perna virou mandioca brava. A tripa virou batata
doce. O pênis, araruta. O joelho, uma cabacinha.
Pai
e mãe recolheram todos esses alimentos que brotaram do menino. Com a
mandioca ralada foi feito o beiju. As migalhas caídas foram levadas
pelas formigas para outras malocas da aldeia e quando os demais
indígenas as comeram, logo passaram a fazer o mesmo. Surgem assim as
roças indígenas.
Com a invasão das terras Mÿky,
as mortes e expulsões se ‘incorporaram’ ao mito. Dos corpos martirizados
nasce o arroz, cultivo que se tornou uma especialidade Mÿky, a
cana-de-açúcar, a banana, entre outros. Não comercializam o que
produzem, apenas em momentos de troca. A roça, portanto, ganha
significado cosmológico e religioso em todo seu ciclo, durante o ano.
Cultivá-la significa não se desgarrar da cultura. Por ela perpassa a
resistência e a construção do projeto de futuro Mÿky.
Na
aldeia vivem hoje 121 indígenas: apenas cinco anciãos e 52 crianças; o
restante, entre a juventude e a fase adulta. “Preocupa a bebida porque
jovem não pensa muito. Só bebem. Gostam disso (sic)”, aponta Xinuxi
Mÿky. Além do alcoolismo, o emprego assalariado e os atrativos de fora,
como motos e automóveis, têm levado a debates entre os integrantes da
comunidade. Assim a escola indígena acaba por ter papel central nesse
contexto.
A língua Mÿky é preservada como
elemento fundamental dentro de um contexto de transformações e ataques à
sua cultura. Jaapátau Mÿky é professora e alfabetizou 24 crianças nos
últimos dois anos. “Ensino com base no trabalho, nas práticas do povo.
Caminhamos pela aldeia e vemos tudo que a envolve”, explica. A
metodologia de ensino de Jaapátau está expressa no Projeto Político
Pedagógico (PPP) da escola Mÿky.
Nele, os mitos
de criação, a roça, o jeito de se fazer as moradias tradicionais, a
culinária, as lutas de defesa do território, a história e tudo que
envolve o povo fazem parte do PPP.
As casas
feitas em tábuas de madeira com piso de cimento substituíram as malocas
familiares, onde todos convivem num mesmo espaço comum. Motos cruzam o
terreiro junto com bicicletas, crianças e animais. Sob o sol, o dia
queima devagar as mudanças ligeiras e permanentes no cotidiano Mÿky. Os
fios de alta tensão riscam os horizontes da aldeia e levam para as casas
a possibilidade de se ter geladeira, televisão, microondas e demais
utensílios eletroeletrônicos.
Nesse sentido, as
preocupações dos indígenas são de primeira ordem: o fim da casa coletiva
gerou impactos no convívio. Com a televisão, como ficará? A partilha
dos alimentos, marca dos Mÿky, sofrerá alguma alteração com a
possibilidade de se acumular alimentos em geladeiras? Perguntas
discutidas entre os Mÿky. Apenas uma casa coletiva foi mantida pelo
povo. Ela é usada nas noites de canto da Jéta sagrada, ritual onde as
mulheres não podem participar e por isso ficam dentro da casa coletiva
com as crianças.
Os homens e jovens ficam fora,
no terreiro, deitados em redes, ao redor de uma fogueira, contando
histórias e tirando os mais lindos sons da Jéta. No entanto, tais
encontros estão cada vez mais raros.
Anambu deu o algodão
O
canto de uma nambu (espécie de ave) atraiu a atenção de uma mulher
indígena que fazia corda para a confecção de redes. Quando a viu,
prontamente começaram a conversar. Curiosa, a nambu perguntou o que a
mulher estava fazendo. Ao saber, a nambu disse que era dona do algodão e
que o daria para a indígena – que junto com o marido dominou o cultivo
das roças de algodão. O mito representa a importância do cultivo do
algodão entre os Mÿky. Mais do que isso, a importância que os seres da
natureza representam para os indígenas.
“Os
brancos usam máquinas para derrubar tudo e vender a madeira. Por isso
brigamos por nossos direitos. Queremos a mata inteira para as antas e os
animais terem o que comer e terem vida. Sem nossa existência fica
difícil”, diz o cacique Janãxi. A consciência dos Mÿky quanto à natureza
é profunda. Diminuíram algumas caças porque observaram a diminuição de
algumas espécies com a ação de madeireiros e latifundiários criadores de
gado.
Nos rios, a poluição também diminui, ano a
ano, a quantidade de espécies de peixe para a pesca. A construção de
uma usina hidrelétrica – a cerca de 8 km da aldeia - perto do rio
Papagaio piorou a situação, pois gerou impactos na comunidade e em
outros rios. “Na minha cabeça isso é motivo de grande preocupação. Os
fazendeiros estão nos cercando feito galinhas num galinheiro, e nós
estamos crescendo”, explica o cacique.
A
comunidade agora reivindica que todo o Território Indígena, 186 mil
hectares, entre na demarcação feita pela Funai antes da Constituição de
1988. É nessa área não demarcada que atuam os fazendeiros e madeireiros –
inclusive dentro da área demarcada, motivo da criação de um grupo de
fiscalização entre os Mÿky. O laudo antropológico da Funai levantou mais
de 100 locais de interesse dos indígenas fora da atual demarcação, como
cemitérios, áreas de reza, caça e pesca, de onde foram expulsos por
fazendeiros invasores.
“Disseram que compraram
nosso território. Fizeram mesmo foi nos expulsar”, conta Mãty’y Mÿky.
Estradas são constantemente abertas para a passagem das carretas, a
Funai não toma providências – se trata de uma área em processo de
demarcação – e o Ibama diz que nada pode fazer pois está fora da área
indígena. Segundo estimativas de representantes da prefeitura de
Brasnorte, 200 mil metros cúbicos de madeira são retirados por mês do
território. Para Warakuxi Mÿky, as mudanças nem sempre são ruins, mas é
preciso garantir a cultura e o território: “A energia elétrica é boa,
mas não podemos deixar nossos alimentos, nossas práticas, abandonar a
roça. Agora é hora de intensificar isso tudo e ir lutar para que nosso
território seja de fato nosso, para podermos proteger os animais e nosso
futuro”. (Jornal Porantim)