domingo, 2 de agosto de 2009

5 anos de ocupação do Haiti


Por Mara Onijá, dirigente da LER-QI e integrante do Pão e Rosas





“Tentei achar a origem do vazamento, mas quando percorria com os olhos o fio de água, detive-me no meio da calçada: uma senhora estava literalmente se lavando na água suja do nosso esgoto. Apenas com a roupa de baixo, esfregava alguma coisa no corpo e depois se enxaguava com aquela água. Parecia bastante idosa: com os cabelos muito brancos e os braços bem finos, se mexia lentamente e às vezes precisava se apoiar na parede para não perder o equilíbrio”. [1]



O trecho citado acima, escrito por um soldado que participou da primeira fase da MINUSTAH (“Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti”) é uma das cruas expressões da brutalidade a que está submetida a população negra haitiana. Quando se completam cinco anos da ocupação da ONU, liderada pelas tropas brasileiras, nós do grupo de mulheres Pão e Rosas nos manifestamos uma vez mais pela retirada das tropas do Haiti e em defesa de nossas irmãs e irmãos haitianos. Cinco anos que se completam com mais mortes.



Nos últimos dias, o Haiti ganhou uma vez mais as páginas da mídia internacional. Na semana passada, dia 18/06, um homem foi morto num protesto de milhares de pessoas contra a ocupação militar durante o funeral de um padre que era ligado ao ex-presidente Jean Bertrand Aristide. O manifestante foi atingido pelas tropas brasileiras, segundo os relatos dos próprios manifestantes.



Desde o início do mês, mobilizações pelo aumento do salário mínimo e contra a ocupação tomaram as ruas e, como já é de hábito, as tropas cumpriram seu papel de repressão junto à polícia haitiana. Dezenas de jovens foram presos ou ficaram feridos. Estudantes se destacaram nos protestos confrontando a polícia e as tropas com pedras e barricadas, chegando a incendiar um carro da ONU.




São fatos que expressam novamente o caráter da ocupação no Haiti e a resposta dada pelo povo negro haitiano, que recorrentemente se rebela contra a miséria e a opressão que marcam a história desse país.




Corpos violados, estupros e muita hipocrisia
Uma pesquisa divulgada em 2006, coordenada por Royce Hutson, revelou dados alarmantes: 35 mil casos de violações de mulheres e crianças em dois anos, número que inclui 32 mil estupros. A pesquisa informava ainda a idade da vítima mais nova: seis anos. A mesma pesquisa informa que no mesmo período, somente em Porto Príncipe, a capital do país, ocorreram 8 mil homicídios.
No ano de 2007, a imprensa noticiou que durante os três dias de carnaval houve muitos casos de violência contra a mulher, fato que gerou repercussão por alguns dias, mas depois entrou para a lista da impunidade como tantos outros. Começou-se falando em 50 casos de estupro, mas a própria Ministra da Condição Feminina e dos Direitos das Mulheres, Marie Laurence Jocelyn Lassegue, declarou que "a polícia nacional recebeu denúncias a respeito de 800 casos, entre as quais muitas vítimas de violência carnal" [2]. E essa violência não escolhe idade. Entre os casos ocorridos durante aquele carnaval, a idade das vítimas ia de 3 a 65 anos de idade!



Enquanto as mulheres haitianas seguem vivendo uma realidade alarmante de violência, os discursos da ONU nos meios de comunicação revelam uma vez mais a hipocrisia dessa instituição que serve apenas aos interesses dos países imperialistas, como é o caso dos Estados Unidos e da França, os dois maiores algozes do povo haitiano ao longo de sua história.



Em outubro do ano passado, quando renovou o prazo para manutenção das tropas no Haiti, a ONU declarou que "condena vigorosamente as graves violações contra as crianças afetadas pela violência armada, bem como o estupro e outras formas de abuso sexual às garotas". A ONU condena as ações praticadas pelas suas próprias forças? Alguém pode acreditar que essa instituição não tem ciência de que grande parte das violações cometidas contra as mulheres haitianas tem como autores os membros das suas tropas de ocupação? Não poderia haver hipocrisia maior.



E a hipocrisia se prolonga também nos governos do Haiti e Brasil. René Préval, presidente do Haiti, um negro que dirige o país de acordo com os interesses do imperialismo [3], e Lula fazem propaganda de ações de combate à violência contra a mulher, quando são as suas mãos que controlam, junto com a ONU, uma ocupação que provoca as formas mais brutais de violência.
Mostra de tal hipocrisia é o projeto “Combate à violência contra a mulher no Haiti”, assinado pelos dois governos. Em maio de 2008, foi assinado um “termo de cooperação”, instaurando a segunda fase do programa que diz ter por objetivo combater “sobretudo violências sexuais contra jovens mulheres e estupros coletivos” [4].



Nós do Pão e Rosas dizemos taxativamente: não pode existir um verdadeiro projeto em defesa das mulheres pelas mãos dos governos e instituições internacionais que são as mesmas que subjugam o povo haitiano. Enquanto Nilcea Freire, Secretária Especial de Políticas para as Mulheres do governo Lula, assina acordos que no papel podem parecer progressivos, as mulheres haitianas seguem tendo suas famílias destruídas com a morte de seus familiares. Enquanto o governo brasileiro ganha o prêmio por ter, segundo a ONU, a melhor lei contra a violência às mulheres, esse mesmo governo ao lado também da ONU sustenta a violência legalizada das mulheres haitianas. As denúncias de estupros, aliciamento de crianças e adolescentes para prostituição, troca de sexo por comida, entre outras atrocidades seguem sendo prática constante da polícia e das tropas de ocupação. Mesmo quando denunciados, os casos seguem impunes.



“Somos as negras do Haiti, contra as tropas de Lula estamos aqui”


Estamos ao lado do povo e das mulheres haitianas. É impossível falar em combate à violência contra as mulheres haitianas sem associar isso à retirada imediata das tropas da ONU. Não pode existir emancipação das mulheres haitianas, enquanto o povo haitiano permanecer subjugado ao imperialismo.

Os setores feministas atrelados ao governo de Lula, assim como os setores do movimento negro nessa mesma condição, são incapazes de travar uma luta conseqüente em defesa do povo e das mulheres do Haiti. Por mais trágico que seja tal fato, esses setores se proclamam defensores dos direitos das mulheres e do povo negro, mas abrem mão dessas bandeiras ao primeiro risco de colocar em evidência a responsabilidade que tem seu governo num processo tão abominável como é a ocupação.



Por último, vale lembrar que para além de um povo que hoje está submetido a tamanha opressão, ao longo de sua história se levantou contra seus senhores. Resgatemos a tradição da Revolução de São Domingos, uma revolução de negros escravizados que se colocaram em combate, expulsando os brancos colonizadores e propondo-se a tomar em suas mãos o seu próprio destino.



Em defesa da mulher negra haitiana!
Punição para todos os casos de violência, estupro e prostituição infantil! Fora as tropas do Haiti! Pelo direito à auto-determinação do povo negro haitiano!





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No Haiti, a insalubridade tem rosto de mulher
Viemos denunciando que o direito à maternidade nos é negado sistematicamente. No trabalho, são pesadas as pressões para que a mulher não engravide. Na saúde pública, o atendimento médico é tão precário a ponto de que muitas mulheres morrem por complicações que poderiam ser facilmente evitadas.



No Haiti, essas condições são ainda piores. O país tem o maior índice de mortalidade materna do Hemisfério Oeste, o que significa que para cada 100 mil nascimentos, morrem 523 mulheres (dados de 2004). Para se ter uma idéia do abismo existente entre esse índice e o de outros lugares do mundo, na Europa para cada 100 mil nascimentos, morrem 8 mulheres. Isso explicita ainda mais o fato de que a mortalidade materna, na maioria das vezes, poderia ser evitada, se houvesse um acompanhamento médico adequado antes, durante e após o parto.



Ao contrário disso, muitas mulheres haitianas acabam tendo seus bebês em casa, porque não conseguem atendimento nos hospitais, que por sua vez apresentam um quadro desesperador: partos acontecendo nos corredores, estacionamentos, escadas. No caso dos partos realizados em casa, a mulher sequer tem a garantia de receber a visita de um médico caso haja alguma complicação no parto: os médicos não vão aos bairros pobres por terem medo de seqüestro.




[1] Trecho do livro Um soldado brasileiro no Haiti, de Tailon Ruppenthal, depoimento a Ricardo Lísias. Editora Globo, 2007.
[2] Haiti registra ao menos 50 estupros de mulheres durante Carnaval. Folha on line, 01/03/2007.
[3] Além de apoiar abertamente a manutenção das tropas, René Préval representa um governo fantoche do imperialismo em todos os sentidos. Enquanto paga rios de dinheiro da dívida externa, a população haitiana vive sob condições de vida miseráveis, chegando ao ponto de fazer “pão” de lama para matar a fome.
[4] Governo brasileiro firma termo de cooperação com Haiti para combate à violência contra a mulher, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 27/05/2008. http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/noticias/ultimas_noticias/MySQLNoticia.2008-05-27.5501

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