Logo que Troy Davis foi executado, já se podia contar mais 27 execuções com data para ocorrer em alguns dos 34 estados norte-americanos onde a pena é aplicável. Cerca de 3.250 pessoas estão esperando na fila do corredor da morte nos EUA. Uma pesquisa Gallup, de 2010, mostrou que 64% dos norte-americanos são a favor da pena de morte, enquanto 29% se opõem – curiosamente, 34% dos que a apoiam acreditam que inocentes já foram executados injustamente.
Sean Purdy e Frederico Souza de Queiroz Assis
Na noite de 16 de outubro de 1968, os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos, após terem conquistado, respectivamente, as medalhas de ouro e de bronze na prova de 200 metros rasos nos jogos olímpicos da Cidade do México, subiram ao pódio e ergueram seus punhos cerrados, em um protesto contra a situação dos afro-americanos em seu país. A imagem ficaria famosa em todo o mundo e se transformaria em marco na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Após o gesto polêmico, ambos foram expulsos da vila olímpica e banidos da delegação norte-americana. Suas trajetórias como atletas profissionais seriam interrompidas.
Exatamente uma semana antes, nascia em Savannah, no estado da Geórgia, Troy Anthony Davis, que viria a ser condenado à pena de morte, acusado de ter assassinado o policial Mark MacPhail em 1989. Davis, que havia conseguido adiar sua execução por três vezes, foi finalmente morto por injeção letal no presídio de segurança máxima de Jackson em 21 de setembro último, sob um clima de manifestações populares e pedidos de clemência, em função das várias dúvidas que pairavam sobre sua culpabilidade.
A defesa de Davis havia apresentado uma declaração em que sete das nove testemunhas originais reviam seus relatos e se retratavam da acusação de que ele era o assassino. No dia do crime, o policial MacPhail trabalhava como segurança particular em uma lanchonete do Burger King e, ao tentar socorrer um morador de rua que acabara de ser espancado, foi assassinado com dois tiros pelo agressor. As testemunhas, agora, declaravam ter sido vítimas de intimidação àquela época; algumas, inclusive, apontando uma das duas testemunhas que mantiveram seus depoimentos como o verdadeiro autor do crime.
Diante disso, muito se questionou se esse não seria mais um caso em que um cidadão negro seria injustamente condenado pela morte de um cidadão branco em solo dos EUA. O caso obteve uma repercussão sonora no país, talvez a maior desde a execução do casal Julius e Ethel Rosenberg, mortos em 1953 sob suspeita de espionagem em favor da União Soviética.
Diversas personalidades e organizações da sociedade civil clamaram por perdão, comutação da pena ou ao menos a chance de haver um novo julgamento para Davis. Nomes da política internacional e do mundo do entretenimento juntaram-se à lista dos apoiadores. Em um dos últimos atos antes de por fim à carreira da banda, o R.E.M. pediu aos fãs que assinassem a petição em favor de Troy Davis. O ex-presidente Jimmy Carter (que já foi governador da Geórgia) opôs-se frontalmente à execução; o ex-diretor do FBI William Sessions e até o político conservador Bob Barr reproduziram os argumentos de que havia muitas questões não esclarecidas a respeito da culpa de Davis.
Nos dias anteriores à execução, a Anistia Internacional lançou a campanha nas redes sociais pela publicação da hashtag “TooMuchDoubt”. Os Tweets vieram de todo o mundo, de lugares como Austrália, Venezuela e Iêmen, por exemplo. A NAACP, organização que luta pelos direitos civis dos afro-americanos desde 1909 (e que teve papel de destaque no combate as leis segregacionistas “Jim Crow”), conseguiu recolher quase 700 mil assinaturas em favor do perdão ao réu. Jovens vestindo camisetas com o slogan criado pela NAACP “I Am Troy Davis” podiam ser vistos em cidades como Londres e Madri. No dia da execução, despontaram mais de 300 manifestações de protesto ao redor do mundo.
Logo que Troy Davis foi executado, já se podia contar mais 27 execuções com data fixada para ocorrer em alguns dos 34 estados norte-americanos onde a pena de morte é aplicável. Ao todo, aproximandamente 3.250 pessoas estão esperando na fila do corredor da morte nos EUA. O estado da Geórgia, que condenou Davis, é um dos estados que mais aplica a pena de morte – não é a toa que o documentarista Michael Moore conclamou um boicote ao turismo e aos negócios com o estado do governador Nathan Deal. O governador do Texas, Rick Perry, pré-candidato à presidencia dos EUA pelo Partido Republicano, orgulhou-se em um recente debate televisivo do fato de sua gestão ter aplicado a pena capital 234 vezes. Em julho deste ano, a justiça texana mandou executar Mark Stroman, mesmo com a súplica de uma das vítimas do crime para que o réu fosse perdoado. Os estados sulistas são, de fato, os que mais aplicam a medida.
Uma pesquisa de 2010 do Instituto Gallup mostrou que 64% dos norte-americanos são a favor da pena de morte, enquanto 29% se opõem – curiosamente, 34% dos que a apoiam acreditam que inocentes já foram executados injustamente.
Avanços e recuos legais marcaram a trajetória dos movimentos contrários à pena de morte nos EUA. Na virada da década de 1970, os abolicionistas obtiveram êxitos no que se refere à interrupção da aplicação da pena. Em 1972, a Suprema Corte decidiu anular todas as disposições normativas que previssem esse tipo de punição. Contudo, já em 1976, ela reviu seu posicionamento e passou novamente a permitir que os estados a aplicassem. O ano de 2011, portanto, marca os 35 anos da volta da pena de morte dos EUA – e o caso de Troy Davis, em boa medida, reabriu o debate em torno de seus méritos.
Além disso, provocou novamente a discussão relativa à diferença no tratamento dado a negros e a brancos pela justiça criminal dos EUA. É importante lembrar que um estudo da Universidade de Iowa na década de 70, que ficaria conhecido como “estudo Baldus”, apontou mediante análise de mais de dois mil casos ocorridos à época na Geórgia que negros teriam 1,7 vez mais chances de serem condenados à pena de morte que brancos sob as mesmas circunstâncias; e concluiu que negros que cometessem crimes contra vítimas brancas eram 4,3 vezes mais propensos à pena do que nos casos em que a relação fosse inversa. Foi emblemático – porque demarcador de uma postura mais conservadora – o caso McCleskey vs. Kemp, no qual a Corte rejeitou a alegação, fundamentada por tal estudo, de que as sentenças do estado fossem discriminatórias, condenando o réu à morte. Uma pesquisa do Los Angeles Times revelou que juristas apontam o caso como a pior decisão da Suprema Corte no pós-guerra.
O filtro racial nos julgamentos persiste até hoje em boa parte dos EUA. Alguns relatórios recentes, produzidos em Stanford e em Yale, demonstram estatisticamente os padrões a partir dos quais os júris operam, ao olhar reús e vítimas, sistematicamente referenciados em termos de raças. Laura Moye, da Anistia Internacional, observa que o sistema criminal norte-americano tende a ser muito mais duro com a população negra. Um em cada três negros acaba tendo que se confrontar com a justiça criminal em algum momento da vida.
Pode-se lembrar de outro famoso caso de condenação à pena de morte cuja sentença, além da dimensão racial, parece apresentar contornos políticos. No final do ano de 1981, o cidadão norte-americano Wesley Cook, mais conhecido como Mumia Abu-Jamal (nome que adotou após sua conversão ao islamismo), foi preso, sob a acusação de ter assassinado o oficial de polícia Daniel Faulkner, e condenado à pena capital no estado da Pensilvânia. Segundo o relato de testemunhas, Abu-Jamal teria intervindo para socorrer seu irmão William Cook, que estaria sendo espancado pelo policial.
Mumia Abu-Jamal tinha uma trajetória de ativismo político, atuando dentro do movimento negro na cidade de Filadélfia. Jornalista – foi presidente da Associação dos Jornalistas Negros da Filadélfia – e ligado ao Partido dos Panteras Negras desde o início de sua adolescência, apresentava um programa em uma rádio local, conhecido como “The Voice of the Voiceless” (algo como “A Voz dos Sem-Voz”, em português), que servia como veículo para denunciar o cotidiano de opressão vivido pela população pobre e negra da cidade. No programa, chegou a entrevistar o cantor jamaicano Bob Marley, o jogador da NBA Julius Irving e o escritor norte-americano ligado à causa negra Alex Haley.
Nos anos 70, seu nome foi incluído em uma lista do FBI das pessoas que representariam uma “ameaça à segurança nacional dos EUA” e recebia intimidações frequentes por parte de autoridades, como o então prefeito Frank Rizzo. À época do julgamento, em 1982, o juiz Albert Sabo teria declarado publicamente seu repúdio ao Partido dos Panteras Negras fundado por Huey Newton e Bobby Seale.
Diante de uma série de aparentes irregularidades processuais, a batalha judicial de Mumia Abu-Jamal reverberou-se em mobilizações de militantes por todo o mundo e – assim como o caso Troy Davis – fez com que os olhos de várias personalidades se voltassem para a questão das condenações nos EUA. Apelos têm partido, desde então, de uma gama variada de figuras, como o Nobel da Paz Elie Wiesel, a ex-primeira-dama francesa Danielle Mitterand, o pastor Jesse Jackson e o porta-voz do movimento zapatista mexicano Subcomandante Marcos, apenas para citar alguns.
Abu-Jamal – que, em 2003, foi nomeado cidadão honorário de Paris (título que havia sido concedido pela última vez a Pablo Picasso, em 1971) e virou até nome de rua em Saint-Denis – está há quase 30 anos preso esperando o momento de sua execução. Jamal escreveu o livro de memórias Live From Death Row no mesmo ano em que foi para o presídio de segurança máxima SCI-Greene, em Waynesburg, Pensilvânia, em 1995.
Um outro caso interessante na mesma linha de sentenças judiciais sobre as quais se podem inferir motivações políticas – muito embora aqui não se tenha resultado em pena capital – é o de Leonard Peltier, condenado à prisão perpétua, cuja menção é bastante diminuta no Brasil. Peltier, de origem indígena Sioux, fazia parte do American Indian Movement (AIM), movimento fundado em 1968, que visava chamar a atenção do governo para as condições vividas pelos povos nativos. Durante o governo Nixon, o movimento foi gradativamente desestabilizado, no contexto de criminalização de organizações consideradas “subversivas”, e ocorreram uma série de confrontos entre agentes do governo – que atuavam por meio da milícia dos “Goon Squads” – e militantes do AIM. Estima-se que 80 membros do movimento foram mortos entre 1973 e 1975.
Foi justamente nesse último ano que houve o “tiroteio em Oglala”, episódio que selaria o destino de Peltier. Argumenta-se que ele teria se transformado em uma espécie de “bode expiatório” por parte das autoridades, na medida em que os outros acusados de homicídio contra dois oficiais do FBI, em Oglala, haviam sido absolvidos pelo júri popular, em função da inexistência de provas que concluissem sua culpa. Sua defesa apresentou novos documentos que apontavam para a insuficiência da tese que Peltier teria atirado nos oficiais e também, a partir daí, sua causa passou a ganhar apoio de vários nomes conhecidos.
O presidente Bill Clinton declarou que, em seu governo, “não se esqueceria de Leonard”, insinuando que poderia declarar indulto ao preso, porém acabou não o fazendo. Essa omissão final de Clinton foi determinante, inclusive, para que o bilionário da mídia David Geffen apoiasse Barack Obama em detrimento de Hillary Clinton nas prévias do Partido Democrata para a corrida presidencial de 2008. Sua imagem de injustiçado perante os procedimentos legais lhe rendeu homenagens da banda Rage Against the Machine, em 1992, ao ser tema da música “Freedom”, bem como da estilista Viviane Westwood, na semana de moda de Londres de 2010, por exemplo.
Peltier – que concorreu à presidência dos EUA pelo Peace and Freedom Party (Partido Paz e Liberdade) em 2004 – tem 67 anos e vem apresentando quadros graves de saúde, tendo sofrido, não raro, agressões de outros presidiários na cadeia. Pode morrer antes que um outro julgamento reveja sua condenação.
Independentemente das clivagens que determinadas sentenças possam apresentar (étnicas, políticas e/ou sociais), as mais de três mil pessoas na fila do corredor da morte nos EUA, culpadas ou não, estão atadas à natureza “hamurabiana” deste tipo de punição. Como afirma Guadalupe Marengo, da Anistia Internacional, a pena de morte é o sintoma de uma cultura de violência e não uma solução para ela.
O funeral de Troy Davis aconteceu na manhã deste 1º de outubro. O estado da Geórgia, que gastou 18 mil dólares com os custos da execução, não cobrirá um centavo das despesas fúnebres. A Anistia Internacional propôs que este fosse o dia da lembrança de que Davis não morreu em vão.
Em sua última carta, Davis pronunciou que “há muitos outros Troy Davis. Esta luta para acabar com a pena de morte não é ganha ou perdida através de mim, mas através da nossa força para seguir em frente e salvar todas as pessoas inocentes em cativeiro em todo o mundo. Precisamos desmantelar esse sistema injusto cidade por cidade, estado por estado e país por país”. De fato, no mesmo dia de sua morte, condenações ou execuções ocorreram no Irã, na China, na Bielorrússia.
Por outro lado, também no mesmo dia, aproximadamente 200 estudantes se concentraram na frente da Casa Branca, cantando hinos de protesto, mandando um recado de “no justice, no vote” ao presidente Barack Obama. E o faziam com os braços levantados e os punhos cerrados.
(*) Sean Purdy é professor de História dos Estados Unidos da Universidade de São Paulo (USP). Frederico Souza de Queiroz Assis é professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC).
Exatamente uma semana antes, nascia em Savannah, no estado da Geórgia, Troy Anthony Davis, que viria a ser condenado à pena de morte, acusado de ter assassinado o policial Mark MacPhail em 1989. Davis, que havia conseguido adiar sua execução por três vezes, foi finalmente morto por injeção letal no presídio de segurança máxima de Jackson em 21 de setembro último, sob um clima de manifestações populares e pedidos de clemência, em função das várias dúvidas que pairavam sobre sua culpabilidade.
A defesa de Davis havia apresentado uma declaração em que sete das nove testemunhas originais reviam seus relatos e se retratavam da acusação de que ele era o assassino. No dia do crime, o policial MacPhail trabalhava como segurança particular em uma lanchonete do Burger King e, ao tentar socorrer um morador de rua que acabara de ser espancado, foi assassinado com dois tiros pelo agressor. As testemunhas, agora, declaravam ter sido vítimas de intimidação àquela época; algumas, inclusive, apontando uma das duas testemunhas que mantiveram seus depoimentos como o verdadeiro autor do crime.
Diante disso, muito se questionou se esse não seria mais um caso em que um cidadão negro seria injustamente condenado pela morte de um cidadão branco em solo dos EUA. O caso obteve uma repercussão sonora no país, talvez a maior desde a execução do casal Julius e Ethel Rosenberg, mortos em 1953 sob suspeita de espionagem em favor da União Soviética.
Diversas personalidades e organizações da sociedade civil clamaram por perdão, comutação da pena ou ao menos a chance de haver um novo julgamento para Davis. Nomes da política internacional e do mundo do entretenimento juntaram-se à lista dos apoiadores. Em um dos últimos atos antes de por fim à carreira da banda, o R.E.M. pediu aos fãs que assinassem a petição em favor de Troy Davis. O ex-presidente Jimmy Carter (que já foi governador da Geórgia) opôs-se frontalmente à execução; o ex-diretor do FBI William Sessions e até o político conservador Bob Barr reproduziram os argumentos de que havia muitas questões não esclarecidas a respeito da culpa de Davis.
Nos dias anteriores à execução, a Anistia Internacional lançou a campanha nas redes sociais pela publicação da hashtag “TooMuchDoubt”. Os Tweets vieram de todo o mundo, de lugares como Austrália, Venezuela e Iêmen, por exemplo. A NAACP, organização que luta pelos direitos civis dos afro-americanos desde 1909 (e que teve papel de destaque no combate as leis segregacionistas “Jim Crow”), conseguiu recolher quase 700 mil assinaturas em favor do perdão ao réu. Jovens vestindo camisetas com o slogan criado pela NAACP “I Am Troy Davis” podiam ser vistos em cidades como Londres e Madri. No dia da execução, despontaram mais de 300 manifestações de protesto ao redor do mundo.
Logo que Troy Davis foi executado, já se podia contar mais 27 execuções com data fixada para ocorrer em alguns dos 34 estados norte-americanos onde a pena de morte é aplicável. Ao todo, aproximandamente 3.250 pessoas estão esperando na fila do corredor da morte nos EUA. O estado da Geórgia, que condenou Davis, é um dos estados que mais aplica a pena de morte – não é a toa que o documentarista Michael Moore conclamou um boicote ao turismo e aos negócios com o estado do governador Nathan Deal. O governador do Texas, Rick Perry, pré-candidato à presidencia dos EUA pelo Partido Republicano, orgulhou-se em um recente debate televisivo do fato de sua gestão ter aplicado a pena capital 234 vezes. Em julho deste ano, a justiça texana mandou executar Mark Stroman, mesmo com a súplica de uma das vítimas do crime para que o réu fosse perdoado. Os estados sulistas são, de fato, os que mais aplicam a medida.
Uma pesquisa de 2010 do Instituto Gallup mostrou que 64% dos norte-americanos são a favor da pena de morte, enquanto 29% se opõem – curiosamente, 34% dos que a apoiam acreditam que inocentes já foram executados injustamente.
Avanços e recuos legais marcaram a trajetória dos movimentos contrários à pena de morte nos EUA. Na virada da década de 1970, os abolicionistas obtiveram êxitos no que se refere à interrupção da aplicação da pena. Em 1972, a Suprema Corte decidiu anular todas as disposições normativas que previssem esse tipo de punição. Contudo, já em 1976, ela reviu seu posicionamento e passou novamente a permitir que os estados a aplicassem. O ano de 2011, portanto, marca os 35 anos da volta da pena de morte dos EUA – e o caso de Troy Davis, em boa medida, reabriu o debate em torno de seus méritos.
Além disso, provocou novamente a discussão relativa à diferença no tratamento dado a negros e a brancos pela justiça criminal dos EUA. É importante lembrar que um estudo da Universidade de Iowa na década de 70, que ficaria conhecido como “estudo Baldus”, apontou mediante análise de mais de dois mil casos ocorridos à época na Geórgia que negros teriam 1,7 vez mais chances de serem condenados à pena de morte que brancos sob as mesmas circunstâncias; e concluiu que negros que cometessem crimes contra vítimas brancas eram 4,3 vezes mais propensos à pena do que nos casos em que a relação fosse inversa. Foi emblemático – porque demarcador de uma postura mais conservadora – o caso McCleskey vs. Kemp, no qual a Corte rejeitou a alegação, fundamentada por tal estudo, de que as sentenças do estado fossem discriminatórias, condenando o réu à morte. Uma pesquisa do Los Angeles Times revelou que juristas apontam o caso como a pior decisão da Suprema Corte no pós-guerra.
O filtro racial nos julgamentos persiste até hoje em boa parte dos EUA. Alguns relatórios recentes, produzidos em Stanford e em Yale, demonstram estatisticamente os padrões a partir dos quais os júris operam, ao olhar reús e vítimas, sistematicamente referenciados em termos de raças. Laura Moye, da Anistia Internacional, observa que o sistema criminal norte-americano tende a ser muito mais duro com a população negra. Um em cada três negros acaba tendo que se confrontar com a justiça criminal em algum momento da vida.
Pode-se lembrar de outro famoso caso de condenação à pena de morte cuja sentença, além da dimensão racial, parece apresentar contornos políticos. No final do ano de 1981, o cidadão norte-americano Wesley Cook, mais conhecido como Mumia Abu-Jamal (nome que adotou após sua conversão ao islamismo), foi preso, sob a acusação de ter assassinado o oficial de polícia Daniel Faulkner, e condenado à pena capital no estado da Pensilvânia. Segundo o relato de testemunhas, Abu-Jamal teria intervindo para socorrer seu irmão William Cook, que estaria sendo espancado pelo policial.
Mumia Abu-Jamal tinha uma trajetória de ativismo político, atuando dentro do movimento negro na cidade de Filadélfia. Jornalista – foi presidente da Associação dos Jornalistas Negros da Filadélfia – e ligado ao Partido dos Panteras Negras desde o início de sua adolescência, apresentava um programa em uma rádio local, conhecido como “The Voice of the Voiceless” (algo como “A Voz dos Sem-Voz”, em português), que servia como veículo para denunciar o cotidiano de opressão vivido pela população pobre e negra da cidade. No programa, chegou a entrevistar o cantor jamaicano Bob Marley, o jogador da NBA Julius Irving e o escritor norte-americano ligado à causa negra Alex Haley.
Nos anos 70, seu nome foi incluído em uma lista do FBI das pessoas que representariam uma “ameaça à segurança nacional dos EUA” e recebia intimidações frequentes por parte de autoridades, como o então prefeito Frank Rizzo. À época do julgamento, em 1982, o juiz Albert Sabo teria declarado publicamente seu repúdio ao Partido dos Panteras Negras fundado por Huey Newton e Bobby Seale.
Diante de uma série de aparentes irregularidades processuais, a batalha judicial de Mumia Abu-Jamal reverberou-se em mobilizações de militantes por todo o mundo e – assim como o caso Troy Davis – fez com que os olhos de várias personalidades se voltassem para a questão das condenações nos EUA. Apelos têm partido, desde então, de uma gama variada de figuras, como o Nobel da Paz Elie Wiesel, a ex-primeira-dama francesa Danielle Mitterand, o pastor Jesse Jackson e o porta-voz do movimento zapatista mexicano Subcomandante Marcos, apenas para citar alguns.
Abu-Jamal – que, em 2003, foi nomeado cidadão honorário de Paris (título que havia sido concedido pela última vez a Pablo Picasso, em 1971) e virou até nome de rua em Saint-Denis – está há quase 30 anos preso esperando o momento de sua execução. Jamal escreveu o livro de memórias Live From Death Row no mesmo ano em que foi para o presídio de segurança máxima SCI-Greene, em Waynesburg, Pensilvânia, em 1995.
Um outro caso interessante na mesma linha de sentenças judiciais sobre as quais se podem inferir motivações políticas – muito embora aqui não se tenha resultado em pena capital – é o de Leonard Peltier, condenado à prisão perpétua, cuja menção é bastante diminuta no Brasil. Peltier, de origem indígena Sioux, fazia parte do American Indian Movement (AIM), movimento fundado em 1968, que visava chamar a atenção do governo para as condições vividas pelos povos nativos. Durante o governo Nixon, o movimento foi gradativamente desestabilizado, no contexto de criminalização de organizações consideradas “subversivas”, e ocorreram uma série de confrontos entre agentes do governo – que atuavam por meio da milícia dos “Goon Squads” – e militantes do AIM. Estima-se que 80 membros do movimento foram mortos entre 1973 e 1975.
Foi justamente nesse último ano que houve o “tiroteio em Oglala”, episódio que selaria o destino de Peltier. Argumenta-se que ele teria se transformado em uma espécie de “bode expiatório” por parte das autoridades, na medida em que os outros acusados de homicídio contra dois oficiais do FBI, em Oglala, haviam sido absolvidos pelo júri popular, em função da inexistência de provas que concluissem sua culpa. Sua defesa apresentou novos documentos que apontavam para a insuficiência da tese que Peltier teria atirado nos oficiais e também, a partir daí, sua causa passou a ganhar apoio de vários nomes conhecidos.
O presidente Bill Clinton declarou que, em seu governo, “não se esqueceria de Leonard”, insinuando que poderia declarar indulto ao preso, porém acabou não o fazendo. Essa omissão final de Clinton foi determinante, inclusive, para que o bilionário da mídia David Geffen apoiasse Barack Obama em detrimento de Hillary Clinton nas prévias do Partido Democrata para a corrida presidencial de 2008. Sua imagem de injustiçado perante os procedimentos legais lhe rendeu homenagens da banda Rage Against the Machine, em 1992, ao ser tema da música “Freedom”, bem como da estilista Viviane Westwood, na semana de moda de Londres de 2010, por exemplo.
Peltier – que concorreu à presidência dos EUA pelo Peace and Freedom Party (Partido Paz e Liberdade) em 2004 – tem 67 anos e vem apresentando quadros graves de saúde, tendo sofrido, não raro, agressões de outros presidiários na cadeia. Pode morrer antes que um outro julgamento reveja sua condenação.
Independentemente das clivagens que determinadas sentenças possam apresentar (étnicas, políticas e/ou sociais), as mais de três mil pessoas na fila do corredor da morte nos EUA, culpadas ou não, estão atadas à natureza “hamurabiana” deste tipo de punição. Como afirma Guadalupe Marengo, da Anistia Internacional, a pena de morte é o sintoma de uma cultura de violência e não uma solução para ela.
O funeral de Troy Davis aconteceu na manhã deste 1º de outubro. O estado da Geórgia, que gastou 18 mil dólares com os custos da execução, não cobrirá um centavo das despesas fúnebres. A Anistia Internacional propôs que este fosse o dia da lembrança de que Davis não morreu em vão.
Em sua última carta, Davis pronunciou que “há muitos outros Troy Davis. Esta luta para acabar com a pena de morte não é ganha ou perdida através de mim, mas através da nossa força para seguir em frente e salvar todas as pessoas inocentes em cativeiro em todo o mundo. Precisamos desmantelar esse sistema injusto cidade por cidade, estado por estado e país por país”. De fato, no mesmo dia de sua morte, condenações ou execuções ocorreram no Irã, na China, na Bielorrússia.
Por outro lado, também no mesmo dia, aproximadamente 200 estudantes se concentraram na frente da Casa Branca, cantando hinos de protesto, mandando um recado de “no justice, no vote” ao presidente Barack Obama. E o faziam com os braços levantados e os punhos cerrados.
(*) Sean Purdy é professor de História dos Estados Unidos da Universidade de São Paulo (USP). Frederico Souza de Queiroz Assis é professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação (ESAMC).
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