Richard Dawkins e Christopher Hitchens pediram a advogados que analisassem a viabilidade de uma ação contra o Papa Bento XVI por ter acobertado casos de pedofilia. Pela primeira vez na história moderna a crença subjacente à vida política – aquela segundo a qual quem exerce o poder sobre nós não será julgado pelas mesmas regras legais e morais que regem os cidadãos comuns – pode estar começando a ruir. Imagine o Papa aguardando julgamento numa prisão britânica, e comece a estabelecer as implicações da idéia radical que nunca foi aplicada: igualdade perante a lei. O artigo é de George Monbiot. Há uma promessa implícita no direito internacional: o fim da era de exceções.
George Monbiot
A confissão e o arrependimento não estão entre as virtudes católicas praticadas pelo papa. Ele pediu desculpa pelo estupro de crianças cometido por padres católicos na Irlanda, mas este é um dos poucos escândalos de pedofilia que estão sacudindo a Igreja Católica no qual nem ele nem os membros do seu círculo próximo estiveram envolvidos. Ele condenou os bispos irlandeses por “graves erros de avaliação” e pelo “fracasso como líderes”; porém, de seus graves erros e fracassos – em Munique, no Wisconsin e na Califórnia – ele não disse uma palavra, exceto para desviar o assunto como “fofoca insignificante”. Sua resposta a esse escândalo lembra as origens do verbo pontificar.
Trancadas em seu mundo fechado e auto-controlado, as vítimas do estupro por sacerdotes poderiam apenas enraivecer frustradas. Até agora.
Ao longo do fim de semana passado, Richard Dawkins e Christopher Hitchens anunciaram que pediram a advogados que analisassem a viabilidade de uma ação contra o papa. Recentemente, no Guardian, Geoffrey Robertson, o advogado da banca que eles contrataram, explicou que o líder máximo da igreja que protege padres pedófilos condenava suas vítimas ao silêncio e concedia permissão aos criminosos para perpetrarem trabalhando com crianças, cometendo o insulto de ajudar e ser cúmplice do sexo com menores. Praticado em larga escala, esse ato torna-se crime contra a humanidade, reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional. Esta é a política geral do Vaticano desde que Ratzinger era cardeal. Quando Bento veio ao Reino Unido em setembro passado ele poderia, se Dawkins e Hitchens tivessem obtido deferimento de sua demanda, ter sido preso.
Ao menos estamos acordando para o que o direito internacional significa. Pela primeira vez na história moderna a crença subjacente à vida política – aquela segundo a qual quem exerce o poder sobre nós não será julgado pelas mesmas regras legais e morais que regem os cidadãos comuns – está começando a ruir.
O direito internacional é a resposta atrasada a um dos mais antigos aforismos na língua inglesa. Há deles uma meia dúzia de versões, mas os mais conhecidos são estes: “Eles enforcam o homem e açoitam a mulher que roubam os gansos dos outros, mas deixam os grandes vilões soltos, esses que roubam os outros do ganso”. Esta é a maneira como pensamos que seria o desfecho da coisa. Os poderosos são autorizados por nossas expectativas para perpetrarem no cometimento de grandes crimes, enquanto seus súditos são punidos por ofensas muito menores. Não mais. Imagine o papa aguardando julgamento numa prisão britânica, e comece a estabelecer as implicações da idéia radical que ainda não foi jamais aplicada: igualdade perante a lei.
Ao mesmo tempo em que Dawkins e Hitchens põem em marcha sua ação, a advogada Polly Higgins desafiou nossa percepção do que a igualdade legal significa. Na última sexta, ela lançou a campanha pela inclusão de um quinto crime contra a paz no Tribunal Penal Internacional. O crime é o de ecocídio: a destruição do mundo natural.
O direito da maioria das nações protege furiosamente a propriedade, caprichosamente o indivíduo e a sociedade, escassamente. Um homicídio é denunciado e julgado, homicídio em massa é negócio legitimado pelos estados. Só quando se dão nomes a esses atos – genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão – começamos a entender seu significado moral.
O mesmo se aplica à natureza. O Anexo II da Convenção de Berna criminaliza quem quer que “arranque intencionalmente” uma só flor de uma planta protegida legalmente. Mas você pode consumir quantas vezes quiser, por quanto tempo quiser, como “uma consequência incidental de uma operação plenamente legal”. Arranque a flor de uma lapela e você está no banco dos réus; desmate todo o habitat e a lei não pode tocar em você.
Higgens dá alguns exemplos de ecocídio: a extração de petróleo nas tar sands, em Alberta, Canadá; o imenso pedaço de lixo no Pacífico Norte, a poluição do Delta do Niger por companhias de petróleo. Ela sustenta que o ecocídio raramente é um crime intencional; na maioria dos casos é consequência de outras políticas.
Executivos das corporações ou políticos poderiam ser individualmente processados mas, em vez de multados, deveriam ser condenados a restaurar sistemas naturais que danificaram. O propósito de criminalizar o ecocídio é aumentar os custos do emporcalhamento do planeta ao ponto em que não valha mais à pena destruí-lo. Essa é a conquista óbvia de um entendimento mais amplo da igualdade legal: por que a propriedade privada deveria ser protegida enquanto a riqueza comum da humanidade não o é?
O modo como o direito internacional vigora hoje é frequentemente descrito como a justiça dos vencedores; as únicas pessoas condenadas são aquelas que perderam guerras em que lutaram contra estados poderosos. E não é nem mesmo isso. Na semana passada ficamos sabendo que em torno de 50 suspeitos de crimes de guerra ou de violações dos direitos humanos estão vivendo no Reino Unido. Dentre eles, há supostos torturadores que trabalharam para o governo de Saddam Hussein, outro, que foi escudeiro de Robert Mugabe (era membro da milícia sudanesa Janjaweed) e uma coleção medonha de senhores da guerra afegãos. Mas a polícia não tem tido dotação orçamentária para investigá-los e o Crown Prosecution Service [Ministério Público Britânico] não tem recursos para processá-los. Então, enquanto os ladrões de galinha estão sendo presos, os suspeitos de assassinatos em massa andam livremente entre nós.
É bem a cara das promessas do Primeiro Ministro. Um mês atrás, depois da visita de Tzipi Livni, a ex-ministra de relações exteriores de Israel ao Reino Unido ter sido cancelada por causa do seu temor de ser presa devido a uma ordem de prisão obtida por militantes dos direitos humanos, Gordon Brown escreveu um artigo para o Telegrafh, no qual propõe que se pare com os processos privados por crimes contra a humanidade. Brown disse que a ordem de prisão sustentou-se em “evidências ligeiras”, e que aqueles que visam a prender Livni tinham “agido só para aparecer nas manchetes”. Mas a evidência de crime contra a humanidade ao qual Livni tem sido vinculada – baseada no Relatório Goldstone, entre outros – é maciça, detalhada e difícil de ser questionada.
Brown foi além e fez mais uma declaração plenamente falsa: “O Reino Unido sempre honrará seu compromisso com a justiça internacional. A polícia aqui permanece pronta para investigar os casos, o Ministério Público, para processá-los, as cortes de justiça, para escutá-los”. Seu governo recusou-se a atender aos pedidos para a criação de uma unidade especializada em crimes de guerra e fracassou em investir uma moeda sequer na investigação e no processo legal dos suspeitos de crimes de guerra.
Então, ele explicou seu verdadeiro objetivo na busca da prevenção desse tipo de ação penal privada. Pessoas como Livni, disse, representam “países e interesses com os quais o Reino Unido deve se engajar, se é para defender não apenas nosso interesse nacional, mas para manter e estender uma influência pelo bem pelo planeta”. A Grã Bretanha, em outras palavras, não investigará nem acusará seus aliados. Seu artigo demonstrou o oposto do que ele se dedicou a mostrar: que, se é o caso processar dignatários estrangeiros em visita neste país, as autoridades cuidarão deles. Sem ações penais privadas do tipo das que Dawkins e Hitchens esperam mover, a igualdade perante a lei permanecerá uma ameaça vazia.
O contorcionismo desesperado de Brown no caso Livni sugere que os governos estão começando a temer as implicações escandalosas daquilo de que são signatários. Chegou o momento de fazermos o mesmo. Há uma promessa implícita no direito internacional: o fim da era de exceções.
George Monbiot é jornalista e escritor. Escreve em inúmeros veículos, tem uma coluna do The Guardian e mantém a página pessoal www.monbiot.com
Tradução: Katarina Peixoto
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