Quatro anos depois da maior chacina, ninguém foi punido
Relatório do Conselho Regional de Medicina registra a morte de 493 pessoas por armas de fogo, de 12 a 20 de maio de 2006; segundo entidades, 47 são atribuídas ao PCC e outras 446 a policiais e grupos de extermínio. Até hoje esses crimes não foram devidamente apurados e nem os criminosos julgados, apesar do protesto dos familiares das vítimas.
Por Lúcia Rodrigues
Maio de 2006. Como um tsunami, uma onda vermelha de sangue inunda o Estado de São Paulo. Entre os dias 12 e 20, 493 pessoas foram assassinadas por armas de fogo, segundo o relatório produzido pelo Conselho Regional de Medicina com base nos laudos necroscópicos dos 23 institutos médico legal do Estado. Os números são assustadores e se assemelham aos cenários de guerra. O secretário da Segurança Pública do governo demo-tucano da época, Saulo de Castro, informou a população de que se tratavam de mortes cometidas pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Hoje, sabe-se que o PCC foi responsável por 47 mortes de um total de quase 500. A maioria dos 446 assassinatos restantes é creditada à polícia e aos grupos de extermínios que agem em bairros da periferia. Passados quatro anos, ninguém foi punido pelos assassinatos dos civis, e a quase totalidade desses inquéritos foram arquivados. Há ainda quatro famílias que procuram por seus filhos até hoje. Eles engrossam a lista de desaparecidos do país. Essa conjunção de fatores pode fazer o Brasil sentar novamente no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). No final do mês passado, uma denúncia movida por familiares de ativistas políticos que participaram da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 70, fez as autoridades brasileiras prestarem esclarecimentos ao corpo de juízes internacionais sobre essas mortes.
O jurista Hélio Bicudo, que já presidiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, considera que o Estado brasileiro poderá ser levado novamente às barras do tribunal internacional em função do massacre praticado em maio de 2006. Ele explica que qualquer pessoa pode apresentar denúncia de violação de direitos humanos à Comissão. Se a denúncia for admitida, o trâmite seguido prevê que o Estado seja notificado para sanar essas violações. Se o país não responder em três meses, a Comissão vai à Corte, que é constituída por sete juizes, para que se manifestem a respeito. A decisão dos magistrados deve ser obrigatoriamente cumprida pelo país. “Tem valor coercitivo”, frisa.
Se depender das mães dos mortos no maio sangrento, esses crimes não cairão no esquecimento. Assim como as Mães da Praça de Maio, da Argentina, as brasileiras também saem às ruas para protestar contra a não punição dos culpados pelas mortes de seus filhos. Além da coincidência do mês de maio na história dessas mulheres (lá em função de se reunirem na praça que carrega no nome a data da independência Argentina e aqui porque perderam os filhos nesse mês), as mães brasileiras e argentinas têm outra semelhança fundamental: viraram militantes da causa dos direitos humanos depois que seus filhos foram assassinados pela repressão. Essas mulheres transformaram a dor e a revolta da perda em indignação e força para continuar lutando. Débora Maria da Silva, que preside a Associação de Amparo a Mães e Familiares de Vítimas da Violência e exemplifica a garra dessas guerreiras, virou referência na luta contra a violência estatal. Ela é convidada para participar de debates, inclusive, em universidades. A mulher que trabalhava como vendedora autônoma se transformou em ativista dos direitos humanos. O microfone não a intimida.
Luta por justiça
No último dia 13 de maio, quando foram lembrados os mortos do maio sangrento, durante um ato no centro de São Paulo, Débora fez um discurso emocionado e contundente. “O meu filho era um gari, o exemplo do trabalhador assalariado. Não entregou o atestado médico de uma cirurgia que fez na boca, e que levou 15 pontos, com medo de perder o emprego. Um Estado que tinha o dever de nos dar proteção, e que é pago com nossos impostos, abate nossos filhos. A pena de morte foi decretada como se nossos filhos fossem lixo”, protestou. A federalização das investigações dos crimes é a reivindicação dessas mães, que acreditam que assim conseguirão elucidar essas mortes. Durante o ato, em São Paulo, elas assinaram o pedido que será encaminhado pelo defensor público do Estado, Antonio José Mafezzoli Leite ao procurador geral da República. Para que os crimes possam passar para o âmbito das investigações da Polícia Federal, será preciso que o procurador acate a solicitação da Defensoria e a encaminhe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa é a única forma para se conseguir a entrada da Polícia Federal no caso. Além da Defensoria Pública e das mães e dos pais, assinam solidariamente o pedido de federalização das investigações, as entidades não governamentais Justiça Global e Associação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat – Brasil). Lúcia Rodrigues é jornalistaluciarodrigues@carosamigos.com.br
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