quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Brasília Confidencial




Ayrton Centeno

O Brasil tem direito à verdade

— Agora você vai conhecer a sucursal do inferno! – avisa o carrasco.

Inferno talvez seja uma palavra branda para o que veio a seguir: choques nos genitais, na cabeça, socos, pauladas, queimaduras. Sangrando, suspenso no pau-de-arara, o prisioneiro só pensa em desmaiar para se evadir do inferno prometido e cumprido. Mas seu algoz ordena:

 — Abre a boca para receber a hóstia sagrada!, comanda, instantes antes de  enfiar-lhe um fio elétrico entre os dentes…

Após cinco dias de tortura, a prisioneira está destroçada. Estupram-na então, introduzindo-lhe um cassetete na vagina. Arrancam-lhe os seios. Os tiros que se seguem aliviam o insuportável.

As duas cenas (*) pertencem ao Brasil dos porões. Há milhares delas, já relatadas ou não. Vinte mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos foram mortos ou continuam desaparecidos. Vinte e cinco anos após o ocaso da tirania que imergiu o país nas trevas de 1964 a 1985, a luz ainda não lhe devassou todos os escaninhos. São pedaços do cotidiano das masmorras da Oban e do DOI/CODI. Sua função, aqui, na abertura do texto, não é outra senão clarear o que está em jogo, agora, no momento em que eu escrevo e em que você lê estas linhas.

Sabemos quem morreu. Mas não sabemos quem matou. Sabemos quem pagou com a carne, o sangue e, em alguns casos, até a alma, o preço de peitar a ditadura. Mas não sabemos quem foi canalha ao ponto de chacinar homens e mulheres algemados. Precisamos saber mais dos martirizados. E precisamos saber dos monstros.

Se não soubermos o que precisamos saber – dos lugares, das circunstâncias, das identidades, das ordens, das palavras – pensaremos sempre que as Forças Armadas, como um todo, quem mandava e quem obedecia, foram protagonistas destes açougues soturnos lavados em sangue, fezes, vômito e urina. Se não ficar esclarecido quem foram os canalhas como saberemos se seu exemplo, na caserna, não permanece exemplar? Se não soubermos, como confiaremos, para qualquer coisa, em militares que fazem de covardes seus iguais? Se não soubermos, como saber se, amanhã, tudo não se repetirá?

O passado não pode ser seqüestrado por carniceiros. Tampouco é propriedade privada de qualquer casta. Pertence ao Brasil e aos brasileiros como sua História que é. Produto de 27 conferências estaduais, com a participação direta de 14 mil pessoas, o Plano Nacional de Direitos Humanos III quer iluminar estes calabouços.

Mas as hostes que querem que os mortos continuem insepultos e seus algozes acobertados são muitas, fortes e variadas. Quem orquestra a reação – como ocorreu na memorável quartelada de 1964 – é a mídia. Ao seu lado, outros personagens da Redentora: a cúpula militar, o latifúndio e a parcela conservadora da Igreja. Cada qual com os seus interesses contrariados. Nem os conglomerados midiáticos nem os seus cães de guarda simpatizam com a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade. Manifestam-se furibundos com a idéia de abrir os arquivos, desvelar o nome dos assassinos, descobrir os restos dos trucidados e entregá-los às suas famílias para um descanso digno.

É estranho, porque os dramas contidos nas arcas fechadas a sete chaves são, certamente, fonte potencial de muitas e elucidativas matérias. Porém, o Jornalismo, como se sabe, não é exatamente o negócio das grandes empresas jornalísticas. Aliás, verdade, justiça, memória podem ser vocábulos constrangedores para sua avassaladora maioria.

A negativa do direito à verdade, sobretudo seu tom editorializado e altissonante, diz mais a respeito do sujeito que nega do que sobre o objeto negado. Basta ver o comportamento da grande mídia durante aquilo que, hoje, ela mesma gosta de chamar de “anos de chumbo” que, aliás, lhes foram, em regra, bastante leves. Tanto foi assim que muitos impérios da comunicação floresceram à sombra das baionetas.

Enquanto a imprensa internacional denunciava a prática corrente da tortura no Brasil, a mídia nativa defendia o regime dos generais. E acusava os confrades europeus e norte-americanos de estarem a serviço da “esquerda totalitária” (2). Vejamos, por exemplo, O Globo. No editorial “Torturas?”, de 22 de novembro de 1969, o diário da família Marinho reclama que “jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses, italianos publicam frequentemente matérias fantasiosas a respeito de “banhos de sangue” que aqui ocorreriam (...)”. A seguir, O Globo pede que o regime realize uma apuração, brandindo logo a ressalva de que “tais denúncias, no passado recente, não tinham qualquer procedência”.

A algaravia da Folha de S. Paulo é similar: vamos viajar a 1970 e passar os olhos pelo editorial do dia 29 de outubro. Nos seus queixumes, o jornal da família Frias lastima que “no exterior, principalmente na Europa fala-se mal é do Brasil”. A Folha enaltece as obras da ditabranda: a Transamazônica, o PIS, o Mobral, a economia revigorada. “Apesar disso – prossegue – insiste-se lá fora em denegrir a imagem do Brasil (...) Não há outra explicação para essa campanha: má-fé mesmo, uma espécie de represália por não termos deixado que deitasse raízes aqui uma ideologia totalitária e materialista (...)”.

Concorrentes, a Folha e o Estadão partilhavam, porém, idêntica certeza. Na mesma data e ainda no dia seguinte, o Estadão busca explicar esta coisa tão esdrúxula – a convicção de que os presos políticos eram torturados e assassinados no Brasil – como produto de segmentos inconformados com a derrota da “conspiração comuno-demo-cristã-nacionalista apadrinhada pelo Sr. João Goulart”. No dia 30 de outubro de 1969, o jornal Zero Hora, do grupo RBS, saúda o advento da era Médici, a mais brutal e sanguinolenta de todas. Seu artigo de fundo (3) trombeteia que “o Terceiro Governo da Revolução (assim mesmo, com maiúsculas) não vem com planos demagógicos, mas para dar sequência natural ao Movimento de 64, institucionalizando-o definitivamente e levando o país pelos caminhos do desenvolvimento”. Na mesma sentença, canta-se a “naturalidade” na ditadura, sua continuidade eterna e apresenta-se o despotismo como rota do progresso. Nenhum dos jornais defende a tortura como método mas fecha-se convenientemente os olhos para sua existência.

Não será a mídia, portanto, que ajudará a eviscerar uma época capaz de assombrá-la. É tão patético que até podemos imaginar sua postura não como uma opção ideológica mas uma fatalidade da biologia, uma determinante genética golpista. Senão vejamos: implorou pelo golpe em 1954, movimento frustrado pelo tiro que, após fulminar o coração de Getúlio, alvejou o núcleo da conspiração. Dez anos depois, sangrou o governo Goulart até a deposição do presidente constitucional. E aplaudiu a entronização da ditadura...

Por estas e outras, é fácil prognosticar que o PNDH III terá uma vida dura pela frente. Seja como for, é ele que aponta o Norte que o Brasil – como sociedade – e os brasileiros – como cidadãos – terão que perseguir em busca da Verdade, da Justiça e da Memória. E do respeito por si próprios.

(1) Cena 1 - Frei Tito de Alencar Lima, Operação Bandeirantes, São Paulo, 1969. Cena 2 - Sonia Moraes Angel, DOI/CODI, São Paulo, 1973;
(2) Os trechos dos editoriais de O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo foram extraídos de Henfil e o Império do Silêncio, artigo de Maurício Maia, no livro Perfis Cruzados/Trajetórias e militância política no Brasil/org. Beatriz Kushnir
(3) Artigo de Zero Hora, reproduzido pela Revista Porém

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