sábado, 6 de março de 2010

Audiência pode ter consolidado tendência a favor das cotas

Por: Redação - Fonte: Afropress: Foto:Nelson Jr/SCO/STF - 6/3/2010 
 
Brasília -Terminou nesta sexta-feira (05/03) a Audiência Pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal para debater a adoção da política de cotas nas Universidades, deixando entre as mais de 300 lideranças negras e anti-racistas de todo o país que acompanharam os debates, a sensação de que a causa das ações afirmativas ganhou a maioria dos ministros do Supremo (veja o vídeo na TV Afropress).

Nos corredores do STF, além do clima de euforia - por conta da fragilidade dos argumentos dos contra – contabilizava-se como certo, os votos de pelo menos seis ministros favoráveis às ações afirmativas no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental movida pelo Partido Democratas (DEM): Marco Aurélio Melo, Joaquim Barbosa, Celso de Melo, Carmem Lúcia, Ellen Gracie, Ayres Brito, Dias Toffolli e do próprio Ricardo Lewandowski, o relator, responsável pela convocação da Audiência. O julgamento está previsto para acontecer ainda este ano.

Mesmo que Toffolli se abstenha, pelo fato de já ter se posicionado sobre o tema como Advogado Geral da União, seriam seis os votos, entre onze ministros do Supremo. Contabiliza-se como tendo tendência a votar contra apenas o próprio presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, César Peluso e Eros Grau, que se aposenta este ano por completar 70 anos.

Magistrado

Lewandowski foi muito elogiado pela iniciativa por todas as lideranças que usaram a tribuna. "É preciso elogiar a iniciativa do ministro", afirmou a doutora em Filosofia pela USP e uma das mais importantes lideranças negras do país, Sueli Carneiro.

Ele teve comportamento exemplar de magistrado, durante a condução dos trabalhos: sereno, porém, firme, como quando advertiu severamente o advogado Iben Noronha – um dos debatedores contrários – que desrespeitou o Tribunal e os ministros, ao pedir silêncio confundindo o ambiente da Corte com uma sala de aula.

No último dia da Audiência e também com auditórios lotados, foi a vez de aparecer a ala política da campanha contra as cotas liderada pelo advogado José Roberto Ferreira Militão e por José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista. Na ausência de Ivone Maggie, que não compareceu no dia anterior, mas mandou uma carta, lida pela advogada Roberta Kauffman, do DEM, Miranda e Militão ocuparam os 15 minutos que cabiam a cada um, repetindo a velha cantilena que tem ocupado espaço na grande mídia, em especial na Rede Globo de Televisão.

Militão, que se diz a favor das ações afirmativas, é contra que o Estado legisle sobre o tema raça; Miranda fez a mistura de um marxismo que leu e não entendeu para repetir os chavões da velha esquerda brasileira, insensível à questão da raça.

Sueli Carneiro, representando o Instituto da Mulher Negra de S. Paulo, Geledés, lembrou que o Estado brasileiro há tempos vem se manifetando em favor da busca da igualdade entre os cidadãos e usou declarações do ex-vice presidente da República, Marco Maciel, atual senador do DEM, em favor da igualdade, para concluir. “Se essa Corte entende que existe racismo, mesmo não havendo raças, se a inferioridade social não é inerente ao negro, posto que não existem raças, logo só pode ser fruto do racismo. Isso requer então, medidas específicas fundadas na racialidade segregada para romper os padrões de apartação social”.

Ela rebateu os argumentos dos contra de que as cotas “teriam o poder de ameaçar os fundamentos políticos e jurídicos que sustentam a nação, ferir o princípio do mérito, colocar em risco a democracia e deflagrar o conflito racial. Poderosas, essas cotas”, ironizou Carneiro.

Mais que uma ideologia

Por sua vez, o sociólogo Marcos Cardoso (foto), falando em nome da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN) foi contundente e certeiro: “A nossa luta por ações afirmativas e cotas raciais no Brasil tem uma perspectiva de futuro. Para nós o racismo não escolhe tempo, nem espaço, nem lugar. É mais que uma ideologia, é uma instituição em si, alimenta-se e retroalimenta-se cotidianiamente. Funciona sem conflitos e na base de pseudos consensos. A realidade do racismo é a violência em si. O que se está tratando nesses três dias é de humanidade, essa humanidade que, cotidianamente o racismo quer nos negar: a humanidade negro-africana”, salientou.

Cardoso destacou ainda o fato de que os negros no Brasil tem de demonstrar “genialidade para aquilo que, na verdade, basta um pequeno esforço”. “Vivemos em um país de tamanha iniqüidade racial, a ponto de se vitimizar a própria vítima e responsabilizar negros e negras pela sua própria exclusão: preguiçosos, indolentes e incompetentes, o mesmo discurso do século XIX na boca de um senador da República”, afirmou, fazendo alusão à intervenção do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que na véspera responsabilizou os negros pela própria escravidão e ofendeu as mulheres negras dizendo que consentiam nos estupros.

“Antigamente se dizia: vocês não tem dados, vocês não conseguem provar e agora os Institutos de Pesquisa do Brasil expõem os dados, vem aqui dizer que esses dados estão sendo manipulados. “Eles não apresentam suas verdadeiras razões, ocultam seus preconceitos, silenciam e iventam os mais enviezados argumentos. É o velho racismo revestido de novas roupagens, porque o racismo muda, sofistica-se”, sublinhou.

Defesa das cotas

Ainda na parte da manhã, os juristas Fábio Konder Comparato e Flávia Piovesan – o primeiro representando a Rede Educafro e a segunda a Fundação Cultural Palmares – defenderam enfaticamente a política de cotas e ações afirmativas no acesso à Universidade.

Segundo Comparato “até hoje a Constituição foi descumprida no que diz respeito a proteção dos negros e pardos no ensino superior”, e as cotas e ações afirmativas seriam uma forma de garantir a diminuição da desigualdade social, uma vez que dos 10% mais pobres da população, 70%, ou seja, dois terços, são negros e recebem quase metade dos salários dos brancos.

“Foram quase quatro séculos de escravidão e não suscitam a menor e mais leve discussão sobre a necessidade ética e jurídica de se dar aos descendentes de escravos uma mínima compensação por um estado de bestialidade ao qual eles foram reduzidos pelos grupos dirigentes”, disse.

Piovesan disse que “as cotas são imperativo democrático a louvar o valor da diversidade e devem prevalecer em detrimento a esse suposto direito a perpertuação das desigualdades". “Para assegurar a igualdade, não basta apenas proibir a discriminação mediante legislação repressiva, pois a proibição da exclusão em si mesma não resulta automaticamente em inclusão. A adoção das cotas raciais tem amplo, consistente e sólido amparo jurídico”, afirmou a professora ao pedir que o Supremo Tribunal Federal (STF) “celebre o triunfo dos direitos fundamentais, dos quais é o maior guardião”, concluiu.

Avaliação positiva

No período da tarde, reitores das Universidades Federais que adotam programas de cotas e ou ações Afirmativas, fizeram exposições com avaliação desses programas, em geral positivas como o coordenador da Comissão de Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor Renato Hyuda de Luna Pedrosa, para quem a instituição comprovou que “alunos oriundos da rede pública que ocupam cotas de negros, pardos ou índios têm um bom desempenho ao longo do curso e não abandonam os estudos".

Também o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Augusto Chagas, disse que a entidade tem posição favorável às cotas. “A cada período que a gente tem enfrentado essa discussão nos fóruns da UNE esse tema tem ficado mais unânime. A cada congresso nós percebemos que há uma unidade maior no movimento estudantil brasileiro em relação a essa questão”, afirmou.

Depoimentos de estudantes cotistas encerram audiência pública no STF


Ministro Lewandowski garante espaço para apresentação de cotista no último dia de debates sobre cotas raciais

No Supremo Tribunal Federal (STF), a tarde do terceiro e último dia de audiência pública sobre ações afirmativas de acesso ao ensino superior, nesta sexta-feira (5/3), foi marcada pelo relato das diversas experiências com cotas raciais e sociais em instituições brasileiras. Na programação inicial, no entanto, não estavam previstos depoimentos de estudantes cotistas. Atendendo a pedidos do coletivo estudantil Denegrir, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o ministro Ricardo Lewandowski abriu espaço para que o estudante Moacir Carlos da Silva, o Cizinho, fizesse uma apresentação.

Cizinho agradeceu o espaço. “É uma grande responsabilidade estar aqui e falar para o Brasil inteiro. Minha avó não teve fala, minha tataravó nem sei quem foi, nem minha bisavó.” O estudante, de 38 anos, afirmou ser o primeiro de sua família a ingressar na universidade, algo que, segundo ele, seria impossível sem a política de cotas. O estudante afirmou que “houve um abismo grande” entre os defensores e os críticos das cotas, que apresentaram argumentos “anacrônicos”. “Nós falamos do que já está acontecendo. A tal disputa racial não veio. E por prática, em questões de estágio, emprego, violência da polícia, nós sabemos que só cotas sociais não resolvem o problema. A gente não consegue sair da base da pirâmide por uma questão racial.”

Os estudantes receberam o apoio da reitoria da Uerj para participarem da audiência, além do Centro Acadêmico Luiz Carpenter, da Faculdade de Direito, e do Diretório Central dos Estudantes. A Uerj adota o sistema de cotas desde 2003. Entre os beneficiados no vestibular, estão ex-estudantes de escolas públicas, negros de baixa renda e filhos de policiais e bombeiros mortos.

Para garantir o equilíbrio entre palestrantes contra e a favor das cotas, o ministro Ricardo Lewandowski cedeu anteriormente espaço para o estudante de museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Davi Cunha Minuzzo. Neto de imigrantes europeus, ele cursou o ensino médio em uma escola pública, mas só teve a oportunidade de ingressar na universidade uma vez aposentado. “No entanto, abdiquei de me inscrever por cotas sociais, para não tirar a vaga de um jovem estudante.”

Grande foi a surpresa de Minuzzo ao descobrir que vários cotistas exibiam em seus perfis de sites de relacionamentos fotos de viagens à Europa e aos Estados Unidos, carros do ano e outros atributos que, em sua opinião, negavam a legitimidade de esses estudantes concorrerem pelo sistema de cotas. Lesado, o Minuzzo entrou com uma ação na justiça local e foi admitido na universidade. “Não sou contra as cotas, sociais ou raciais. Sou contra o desvirtuamento do sistema de cotas.”

Cotas no Brasil: erros e acertos

Estiveram presentes representantes de cinco universidades públicas brasileiras e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que apresentaram variadas experiências de ações afirmativas. As particularidades de cada região levaram as instituições a adotarem diferentes critérios raciais, sócio-econômicos e geográficos em suas cotas.

Apesar de alguns problemas ainda enfrentados, a opinião geral dos representantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal de Juiz de For a (UFJF) foi de que a autonomia das instituições de ensino superior deve ser preservada e de que as cotas têm de fato contribuído para uma maior inclusão social de parcelas tradicionalmente discriminadas da população.

De acordo com o Professor Marcelo Tragtenberg, de Santa Catarina, “há no Brasil um apartheid igual ou pior que na África do Sul no quesito racial, o que tem um impacto econômico direto”. Tragtenberg criticou a defesa de cotas sociais em vez de raciais. “Fizemos uma simulação na UFSC em que se oferecia 50% das vagas a estudantes do ensino público e constatamos que isso não mudaria o perfil étnico-racial estudantil.”

Entre os principais problemas práticos enfrentados pelos sistemas de políticas afirmativas, está o critério para determinar quem tem direito ou não às cotas. A professora Jânia Saldanha, da UFSM, defende a “autodeclaração como forma de autorreconhecimento para a emancipação e o fortalecimento das identidades”. O professor Renato Barbosa, da Unicamp, reconheceu, contudo, que a autodeclaração pode apresentar problemas e ainda está em discussão.

Em 15 dias, o STF disponibilizará em seu site todo o material dos três dias de audiência pública. Ainda não há prazo para realização do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) movida pelo DEM contra a Universidade de Brasília e do Recurso Extraordinário do estudante Giovane Pasqualito Fialho, ambos sob relatoria do ministro Lewandowski.


                                                                 
                                                                                        
 
 

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