sábado, 6 de fevereiro de 2010

A história invertida

Afonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
25/01/2010

Decorrido mais de um ano desde o início da crise nos EUA, o desemprego persiste em 10% da força de trabalho; continuam elevados os níveis de capacidade ociosa na indústria; e o consumo das famílias mantém-se deprimido, com o aumento da poupança sendo usado tanto para reconstruir a riqueza destruída com a queda dos preços das casas e das ações, quanto para reduzir o endividamento excessivo dos consumidores.
Na Inglaterra, a queda do PIB é bem maior e a recessão mais longa do que nos EUA, apesar dos estímulos expansionistas derivados da forte depreciação da libra. No passado a Inglaterra optou por explorar suas vantagens comparativas, especializando-se na intermediação financeira, e por isso tornou-se muito mais vulnerável ao choque atual, cujo epicentro localiza-se exatamente no sistema financeiro.
Para os países da Zona do Euro não há a opção da depreciação cambial. Países com economias deprimidas, como Grécia, Espanha e Portugal, não só não podem depreciar suas moedas como são obrigados a enfrentar a forte valorização do euro frente o dólar e a libra, fruto de diferenças na intensidade do uso da política monetária na Europa de um lado e nos EUA e Inglaterra, de outro.
A Europa sofre as consequências da sua adesão a uma união monetária, que trouxe benefícios, mas carrega o custo de não ser uma área monetária ótima, porque não tem a suficiente mobilidade de mão de obra nem a capacidade de coordenar expansões e contrações fiscais nos países deprimidos e em crescimento. Isso torna os países-membros vítimas dos choques assimétricos que afetam a região como um todo. A sua limitação no uso de instrumentos é agravada pelo fato de que o BCE não tem a flexibilidade do Federal Reserve e do Bank of England, e os tesouros de grande parte dos países não podem seguir políticas fiscais expansionistas, devido aos elevados graus de endividamento público, levando alguns à beira de um default.
Enquanto isso os países emergentes crescem a taxas robustas, deixando perplexos os observadores dos últimos 20 anos de história, que relata um padrão inverso ao atual, com a ocorrência de crises nos países emergentes e crescimento acelerado nos industrializados. Esse não é o enredo de uma peça teatral discorrendo sobre eventos impossíveis, mas sim uma ocorrência no mundo real. O crescimento acelerado da China já traz preocupação com a inflação, cujo risco é agravado pelos efeitos inflacionários da elevação dos preços internacionais de commodities, que devido ao regime de câmbio fixo migram integralmente para seus preços aos consumidores. A Índia também cresce aceleradamente. Há alguns anos aquele país abandonou a ideia falsa de que o planejamento central era uma alternativa superior às decisões do mercado, convertendo-se à tirania do sistema de preços, encontrando um caminho para o desenvolvimento acelerado. O Brasil realizou importantes alterações no seu regime macroeconômico, tornando-se menos vulnerável a choques externos, graduando-se para sustentar taxas de crescimento do PIB maiores do que a média dos últimos 20 anos.
Teriam os países emergentes em geral, e particularmente o Brasil, descoberto a fórmula mágica do crescimento econômico acelerado e sustentável? Será que é correta a afirmação do megainvestidor Mark Mobius no Financial Times, de que os mercados emergentes entraram em um "secular bull trend" caminhando em uma trajetória positiva que se manterá "secularmente?"
Falemos apenas do Brasil. Todas as alterações no regime de política econômica dos últimos anos permitiram que o país entrasse em uma rota de crescimento econômico mais acelerado. Nisso os governos FHC e Lula têm méritos inegáveis. Mas será que o desempenho de nossa economia no período posterior à atual crise deriva apenas das virtudes do nosso governo? Ou será que a reação dos países industrializados à crise, provocando uma enorme expansão da liquidez mundial, criou um conjunto excepcionalmente favorável de circunstâncias que permitiu ao Brasil acelerar transitoriamente o seu crescimento?  [alguma dúvida?]
Bernanke aprendeu com os erros do Federal Reserve na crise de 1929, e vem expandindo fortemente a liquidez. Isso provoca um aumento no apetite ao risco, levando a uma forte valorização dos preços dos ativos - ações e commodities entre eles - e empurra um forte fluxo de capitais para os mercados emergentes. A economia brasileira beneficiou-se desses ingressos, abrindo o espaço para que o governo expandisse os gastos públicos e trouxesse a taxa de juros para os menores níveis dos últimos anos, ao lado da expansão do crédito.
Esses movimentos expandiram fortemente a demanda doméstica - o consumo das famílias e os investimentos - provocando a aceleração do crescimento do PIB. Mas a demanda crescendo acima do PIB foi também a força que gerou a elevação do déficit nas contas correntes. Os ingressos de capitais valorizaram o real, o que reduziu a inflação - e a taxa de juros - adicionando nova rodada de estímulos ao crescimento da demanda. Finalmente, é essa mesma expansão de liquidez internacional que provocou, junto com o crescimento econômico acelerado da China, a elevação dos preços internacionais de commodities, que impediu que a valorização do câmbio real no Brasil afetasse mais fortemente as exportações.
Ocorre que esse conjunto de circunstâncias não se manterá para sempre. Daqui a pouco, talvez já em 2011, os Estados Unidos começarão a retornar ao normal, e ainda que a elevação da sua taxa básica de juros seja suave e gradual, o fluxo de capitais não será empurrado para os emergentes na mesma intensidade que o faz hoje. Para sustentar o atual crescimento do consumo das famílias e dos investimentos em capital fixo, o Brasil vem aumentando seus déficits em contas correntes, que só são factíveis, sem provocar uma depreciação cambial, porque existem esses ingressos abundantes de capitais. A redução desses ingressos impedirá déficits mais elevados, o que não somente depreciará o câmbio, com os inevitáveis efeitos inflacionários, como também reduzirá a expansão da demanda total doméstica, e em particular o consumo das famílias e os investimentos. O mundo nos dá transitoriamente um presente. Mas apenas transitoriamente!
Quanto mais estímulos o governo der ao crescimento da demanda, maior será a sua popularidade, e maior o déficit nas contas correntes. Esse é o benefício a curto prazo. A prazo mais longo enfrentaremos contrações do consumo e dos investimentos. Os ciclos econômicos não foram eliminados. Quanto menos surfarmos a onda dessa conjuntura internacional favorável, que é transitória, menores serão os custos a serem pagos nos próximos anos.

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